Psicogênese da língua escrita: O que é? Como intervir em cada uma
das hipóteses?Uma conversa entre professores
Marília de Lucena
Coutinho
O que geralmente acontecia quando as crianças
entravam para a escola? Nas séries iniciais, elas eram submetidas a inúmeras
atividades de preparação para a escrita, principalmente cópia ou ditado de
palavras que já foram memorizadas. Primeiro elas copiavam sílabas, depois
palavras e frases e sói mais tarde eram solicitadas a produzir escritas de
forma autônoma. Atividades como essas só aconteciam (e ainda acontecem!) na
escola, porque no dia-a-dia as pessoas aprendem de outro modo: fazendo,
errando, tentando novamente até acertar.
A
concepção tradicional de alfabetização priorizava o domínio da técnica de
escrever, não importando propriamente o conteúdo. Era comum as crianças terem
de copiar escritos que não faziam para elas o menor sentido: “O boi bebe”, “Ivo
viu a uva” e tantas outras sem sentido, mas sempre presente em cartilhas e nos
textos artificializados criados com o único objetivo de “ensinar a ler e
escrever”, pois se acreditava que se aprendia a ler e a escrever memorizando
sons, sílabas e letras. Tudo que era produzido pelos alunos precisava ser
controlado: os aprendizes não eram autorizados a produzir livremente e, para
escrever qualquer palavra, era preciso que primeiro as crianças conhecessem as
letras e famílias silábicas necessárias para escrevê-las.
Era
muito comum as crianças afirmarem coisas como: “Não posso ler (ou escrever)
esta palavra porque minha professora ainda não ensinou esta letra”. Além disso,
escritas espontâneas não eram permitidas, uma vez que as crianças deveriam
escrever exclusivamente para acertar, sem nenhuma intenção de refletir sobre a
escrita. Toda a produção deveria ser constantemente corrigida.
Os
aprendizes não se lançarão ao desafio de escrever se houver a expectativa de
que produzam textos escritos de forma totalmente convencional, exatamente
porque no início da alfabetização isso ainda não é possível.
Ferreiro
e Teberosky (1979) apontam que, tradicionalmente, o problema da alfabetização
tem sido exposto como uma questão de método, e a preocupação seria de buscar o
“melhor e mais eficaz método para ensinar a ler e escrever”. Como discutido no capítulo
anterior, convivemos durante várias décadas (e talvez ainda hoje no espaço de
muitas escolas) com três tipos fundamentais de métodos: os sintéticos (que
centravam a intervenção didática no ensino das partes menores para depois
partir para as unidades maiores), os analíticos (que centravam o ensino na memorização
de unidades maiores para depois chegar às unidades menores) e os
analítico-sintéticos (que conduziam atividades de análise e síntese das
unidades maiores e menores no mesmo período letivo). Embora houvesse
divergência entre os três, ambos percebiam a aprendizagem do sistema de escrita
alfabética como uma questão mecânica, a aquisição de uma técnica para a
realização do deciframento. A escrita era concebida como uma transcrição
gráfica da linguagem oral (codificação),
e a leitura, como uma associação de respostas sonoras a estímulos gráficos, uma
transformação do escrito em som (decodificação).
Essas práticas de ensino da língua escrita pressupunham uma relação quase que
direta com o oral; as progressões clássicas, começando pelas vogais, depois
combinações com consoantes, até chegar à formação das primeiras palavras por
duplicação dessas sílabas, “era” o que podemos chamar de processo ideal para se alfabetizar.
As
autoras supracitadas também apontam que, nas décadas de 1960/1970, surgiram
mudanças significativas no que concernia à maneira de compreender os processos
de aquisição/construção do conhecimento e da linguagem na criança. Foi nessa
época que se passou a considerar que a escrita era uma maneira particular de
“notar” a linguagem e que o sujeito em processo de alfabetização já possuía
considerável conhecimento de uma língua materna. Até então, a alfabetização
muito pouco tinha a ver com as experiências de vida e de linguagem das crianças,
estando essencialmente baseada na repetição, memorização e era tida apenas como
objeto de conhecimento na escola.
Para
aprender a escrever, é fundamental que o aluno tenha muitas oportunidades de
fazê-lo, mesmo antes de saber grafar corretamente as palavras: quanto mais
fizer isso, mais aprenderá sabre o funcionamento da escrita.
A
oportunidade de escrever quando ainda não se sabe permite que a criança
confronte hipóteses sobre a escrita e pense em como ela se organiza, o que
representa, para que serve. Mesmo quando as crianças ainda não sabem escrever
convencionalmente, elas já apresentam hipóteses sobre como fazê-lo.
Aqui no
Brasil, a teoria do conhecimento empirista dominou (e em muitas situações ainda
continua dominando, já que as pesquisas têm evidenciado que muitos professores
alfabetizadores ainda trabalham com as mesmas cartilhas que usavam antes das
versões mais “modernizadas” surgidas com o advento do PNLD*) tudo o que se fez
em alfabetização até a publicação do livro Psicogênese
da língua escrita (FERREIRO e TEBEROSKY, 1979). A teoria empirista
considera que os alunos chegam à escola todos iguais e complemente ignorantes,
no que se refere á escrita, e que bastaria ensinar quais letras correspondem a
quais segmentos sonoros para que eles compreendessem o modo de funcionamento do
sistema alfabético.
Contrariando
os fundamentos empiristas dos “métodos de alfabetização”, que viam o
aprendizado da leitura e da escrita como um processo de associação entre
grafemas e fonemas, no qual a criança evoluiria por receber e “fixar”
informações transmitidas pelos adultos, Ferreiro e Teberosky (op.cit.)
demonstraram que as crianças formulam
uma série de idéias próprias sobre a escrita
alfabética, enquanto aprendem a ler e a escrever. Considerando que a
escrita não é um código, mas um sistema notacional, as autoras observaram que o
aprendiz, no processo de apropriação do sistema de escrita alfabética, formula
respostas para dias questões básicas: I) o que a escrita nota (significado das
palavras? O significante?); II) como a escrita alfabética cria notações? (Utilizando
símbolos quaisquer ou convencionados? Empregando símbolos para representar sons
das palavras? Ao nível da sílaba ou do fonema? etc.)**
Segundo
Teberosky e Colomer (2003), os diversos trabalhos resultantes daquela linha
teórica evidenciaram que:
- As crianças, antes de
poderem ler e escrever sozinhas e convencionalmente, formulam uma série de
idéias próprias ou hipóteses, atribuindo aos símbolos da escrita
alfabética significados bastantes distintos dos que lhes transmitem os
adultos que as alfabetizam;
- As hipóteses elaboradas
pela criança seguem uma ordem de evolução em que, a princípio, não se
estabelece uma relação entre as formas gráficas da escrita e os significantes
das palavras (hipótese pré-silábica). Em seguida a criança constrói
hipóteses de fonetização da escrita, inicialmente, relacionando os
símbolos gráficos às sílabas orais das palavras (hipótese silábica) e
finalmente compreende que as letras representam unidades menores que as
sílabas: os fonemas da língua (hipótese alfabética). Entre esses dois
momentos, haveria um período de transição (hipótese
silábico-alfabética).***
Esse processo de evolução
conceitual se dá entre crianças de diferentes classes sociais, e a
possibilidade de vivenciá-lo ou o ritmo em que ocorre estariam provavelmente
relacionados ao maior/menor contato que os aprendizes têm com a língua escrita
na escola e em seu meio e á possibilidade de vivenciarem situações em que essa
é empregada socialmente.
Para
saber o que pensa o aprendiz sobre o sistema de escrita, é preciso solicitar
que ele escreva palavras, frases ou textos que não lhe foram ensinados
previamente e pedir que ele os leia logo depois de grafá-los. Pesquisas
transversais e longitudinais (FERRERO, 1988; GÓMES PALÁCIO, 1982) mostram que
essas produções escritas têm evolução perfeitamente previsível e que, para a
maioria dos autores e pesquisadores, se organizam em quatro hipóteses ou
níveis. Descreveremos cada um desses níveis, buscando partir da etapa mais inicial
das hipóteses de escrita (nível pré-silábico) até a mais avançada (nível
alfabético), quando os alunos já conseguem compreender os princípios que
baseiam a escrita alfabética. Buscaremos, em cada nível, abordar: (1) as
hipóteses que os alunos já construíram; (2) os conhecimentos que ainda precisam
ser construídos; (3) como o professor, de posse dos dados apontados por seus
alunos, pode intervir, organizando seu planejamento e lançando desafios para
que o aluno passe para outro nível; (4) sugestões de atividades adequadas às
hipóteses de escrita apontadas pelos alunos.
Para
tal análise, baseamo-nos em um conjunto de diagnósticos de escrita colhidos
entre crianças com idades que variam entre 5 e 6 anos. Solicitamos que as
crianças escrevessem determinadas palavras (boi, formiga, gato, cavalo,
elefante, sapo, perereca e rã, e alguns alunos escreveram essas nove palavras e
mais a palavra banana) e que lessem, apontando com seus dedinhos cada um dos
pedaços lido. Tais palavras foram escolhidas em função de alguns critérios: a)
todas faziam parte do mesmo campo semântico (animais); b) as duas primeiras
(boi e formiga) possibilitariam que pudéssemos perceber como os alunos haviam
avançados no que se refere ao realismo nominal; c) algumas palavras (como gato e
sapo) poderiam estar estabilizadas, mas também possuíam o mesmo conjunto de
vogais e isso serviria para observarmos como as crianças, nos níveis silábico e
silábico-alfabético, estavam grafando-as; d) selecionamos palavras
monossílabas, dissílabas, trissílabas e polissílabas para analisarmos como os
alunos grafavam palavras com silabas diferentes e, por fim; e) solicitamos que
apenas o silábico-quantitativo grafasse banana para analisarmos como ele estava
representando as sílabas que possuem letras repetidas.
Para
facilitar a compreensão, optamos por primeiro apresentar a hipótese que o
aprendiz possui em cada um dos níveis e só, posteriormente, discutiremos os
protocolos de escrita, já que assim acreditamos que o leitor terá mais
subsídios para analisar e compreender as escritas infantis.
* O Programa Nacional de Livro Didático
é uma iniciativa do MEC, e seus objetivos básicos são a aquisição e
distribuição, universal e gratuita de livros didáticos para alunos das escolas
publicas do ensino fundamental. Desde 1995, esse objetivo foi ampliado, e o
PNLD passou, também, a avaliar os livros didáticos inscritos no programa. Em
1996, foi publicado o 1º Guia do Livro Didático, que contem pareceres e
recomendações sobre os livros inscritos.
** Na realidade, o emprego do termo
“notação” por Ferreiro e demais adeptos da psicogênese da escrita é mais
recente. Antes se referiam a “representações”, no lugar de “notações”. Fazemos
noutro trabalho (morais, 1995) uma discussão conceitual sobre a adequação de usar-se
os termos “notação”, “notacional” e “notar” para nos referimos ao aprendizado
da escrita alfabética.
*** Estudos realizados no Brasil
(CARRAHER; REGO, 1984; GROSSI, 1986,1987; MORAIS; LIMA, 1989) encontraram
resultados semelhantes, quanto aos estágios conceituais que a criança vive
enquanto aprende a ler e a escrever.
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