A Chegada dos Primeiros Negros
Trazido como imigrante forçado e, mais do que isto, como escravo, o negro africano e os seus descendentes contribuíram com todos aqueles ingredientes que dinamizaram o trabalho durante quase quatro séculos de escravidão. Em todas as áreas do Brasil eles construíram a nossa economia em desenvolvimento, mas, por outro lado, foram sumariamente excluídos da divisão dessa riqueza.
Desembarque de escravos negros vindos da África. Rugendas, BMSP
Esta história começa com a chegada das primeiras levas de escravos vindos da África. Isto se dá por volta de 1549, quando o primeiro contingente é desembarcado em São Vicente. D. João III concedeu autorização a fim de que cada colono importasse até 120 africanos para as suas propriedades. Muitos desses colonos, no entanto, protestaram contra o limite estabelecido pelo rei, pois desejavam importar um número bem superior. Por outro lado, alguns historiadores acham que bem antes dessa data já haviam entrado negros no Brasil. Afirmam mesmo que na nau Bretoa, para aqui enviada em 1511 por Fernando de Noronha, já se encontravam negros no seu bordo.
A consolidação da economia colonial intensificou o tráfico de africanos para o Brasil, especialmente para o Nordeste, onde um tipo de agroindústria se concentrou e floresceu com o cultivo da cana-de-açúcar.
Em 1586, na Colônia, as estimativas davam uma população de cerca de 57.000 habitantes – e deste total 25.000 eram brancos, 18.000 índios e 14.000 negros. Em 1798, segundo o cálculo de Santa Apolônia, para uma população de 3.250.000 habitantes, havia um total de 1.582.000 escravos, dos quais 221.000 pardos e 1.361.000 negros, sem contarmos os negros libertos, que ascendiam a 406.000. Prosseguindo a chegada de africanos, aumentava o seu peso demográfico no total da população brasileira. Para o biênio 1817-1818, as estimativas de Veloso de Oliveira davam, para um total de 3.817.000 habitantes, a cifra de 1.930.000 escravos, dos quais 202.000 pardos e 1.361.000 negros. Havia, também, uma população de negros e pardos livres que chegava a 585.000. No século XVIII, o qual, segundo o historiador Pandiá Calógeras, foi o de maior importação de africanos, a média teria chegado a 55.000 entrados anualmente. Essa massa populacional negro-africana, embora se concentrando especialmente na região nordestina, se espraiará, em maior ou menor quantidade, por todo o território nacional.
Embora não tenhamos possibilidades de estabelecer o número exato de africanos importados pelo tráfico, podemos fazer várias estimativas. Elas variam muito e há sempre uma tendência de se diminuir esse número, em parte por falta de estatísticas e também porque muitos historiadores procuram branquear a nossa população. Essas discussões sobre o número de africanos entrados no Brasil se reacenderam quando se procurou quantificar essa população escrava, e posteriormente a afro-brasileira, para com isto estabelecer-se o padrão do que se poderia chamar de homem brasileiro. A apuração da nossa realidade étnica excluiria o branco como representativo do nosso homem. Daí se procurar subestimar o negro no passado e a sua significação atual.
A Viagem da costa da África à América do Sul
O reverendo Henry Koster descreve as condições desse comércio. Embora ele tenha escrito sobre o tráfico no século XIX, suas observações merecem ser transcritas, pois não houve mudanças significativas nos hábitos dos negreiros: “Como a viagem da costa da África às costas da América do Sul é usualmente curta, pois os ventos estão sujeitos à pequena variação e o tempo é comumente bom, os navios empregados nesse tráfico são, de modo geral, pequenos e não de ótima construção… Os navios negreiros eram a princípio superlotados a um ponto incrível e não havia meios de evitá-lo. Fez-se, porém, uma lei com o fim de restringir o número de pessoas em cada navio. Sou levado a crer, que não se dá atenção a esse regulamento…”.
Depois de vários dias em porões infectos, onde morriam aos magotes, os negros sobreviventes (que às vezes não passavam da metade dos inicialmente embarcados) eram expostos na cidade.
Mercado de escravos. Debret, BMSP
“Os escravos são colocados nas ruas diante das portas dos proprietários”… deitados ou sentados em promiscuidade pelos caminhos, em número que atinge às vezes a duzentos ou trezentos. Os homens usam ao redor da cinta um pedaço de pano azul, puxado entre as pernas e preso nas costas. As mulheres recebem um pedaço maior de pano, que é usado como saia; e às vezes dão-lhes outro, com o fim de cobrir a parte superior do corpo… a vista dessa gente, Deus de bondade! é a coisa mais horrível do mundo. Eles, porém, não parecem sentir mais que o desconforto da situação. Seu alimento é carne salgada, farinha de mandioca, feijão e às vezes banana da terra. A comida de cada dia é cozida no meio da rua, em enormes caldeirões. À noite, os escravos são conduzidos a um ou mais armazéns e o condutor fica de pé, contando-os à medida que eles passam. São trancados; e a porta é aberta de novo ao romper do dia seguinte. O desejo dessas míseras criaturas, de escapar a este estado de inação e desconforto, manifesta-se quando aparece um comprador. De bom grado se levantam para serem colocados em fila, com o fim se serem examinadas e tratadas como gado… Nunca vi qualquer demonstração de pesar ao se separarem um dos outros; mas atribuo este fato a um sentimento de resignação, ou antes, de desesperança, que reprime toda mostra de pesar, que os prepara para o pior, tornando-se indiferentes ao que possa acontecer. Além disso, não é freqüente que uma família seja trazida junta: a separação de parentes e amigos se fez na África. É entre a parte mais jovem do grupo exposto à venda que o prazer pela mudança de situação é especialmente visível; os negros mais velhos fazem o que o condutor deseja, usualmente de modo impassível. Existe uma espécie de parentesco entre os indivíduos trazidos no mesmo navio. Chamam-se uns aos outros de malungos e este termo é muito considerado entre eles. “O comprador dá a cada um dos seus escravos recém-comprados um grande pano de baeta e um chapéu de palha e leva-os o mais depressa possível para a sua fazenda”.
Principais Áreas de Procedência dos Africanos
A questão da procedência dos africanos para o Brasil tornou-se bastante complexa, principalmente no tocante aos povos e etnias que forneceram os maiores contingentes de escravos. A complexidade decorre da mentalidade colonialista dos portugueses que, não considerando o negro um ser humano, pouca importância davam a assinalar de maneira precisa, nos seus registros e documentos, as diversas culturas, línguas e grupos étnicos dos africanos capturados. Ao contrário, estendiam a povos radicalmente distintos um mesmo nome, ou generalizações completamente sem fundamento.
Atualmente a antropologia tem revisto muito do que se escreveu sobre as origens culturais da massa escrava, no começo deste século, restando ainda muitos pontos a esclarecer.
Tradição historiográfica reúne, a grosso modo, os negros em dois grandes grupos étnicos: os bantos (ou bantus), da África equatorial e tropical, da região do golfo da Guiné, Congo e Angola, planaltos da África oriental e costa sul-oriental; e os sudaneses, predominantes na África ocidental, Sudão egípcio e na costa setentrional do golfo da Guiné. Não há nenhuma prova definitiva da predominância de um desses grupos na composição dos negros vindos para o Brasil, embora se afirme normalmente que a maioria era de bantos. Entretanto, as tradições culturais de alguns grupos sudaneses, como os iorubas da Nigéria, são amplamente predominantes nas heranças africanas da cultura brasileira.
Nina Rodrigues percebeu pela primeira vez a predominância sudanesa na Bahia, no que foi confirmado por Artur Ramos. Este destacou no grande grupo a predominância dos iorubas, também chamados nagôs (embora esse nome seja normalmente estendido a outras etnias) da Nigéria, dos gegés (ewes) do Daomé, dos minas da costa norte-guineana, além dos tapas, bornus e galinhas; identificou a presença importante dos hauçás do noroeste da Nigéria, de influência muçulmana, a qual marcou também os fulas (mais claros, de origem berbere-etiópica) e os malês (ou mandingas, de tradição guerreira, considerados altivos e perigosos pelos lusos, que lhes atribuíam feitiçarias). Entre os sudaneses originários da costa da Guiné, amplamente predominantes como vimos a presença comum da língua pertencente ao grupo lingüístico ioruba talvez explique a predominância dos elementos dessa cultura em nosso candomblé e nas influências negras de nossa linguagem.
Havia sudaneses em outros pontos do Brasil, mas talvez houvesse uma predominância banto no centro-sul e no norte. Artur Ramos indica como pontos iniciais de entrada das várias nações bantos os mercados de escravos de Pernambuco (extensivos a Alagoas), Rio de Janeiro (servindo a Minas e São Paulo) e Maranhão. Entre os povos desse grupo, os mais importantes no Brasil foram os cabindas do Congo, os banguelas de Angola, junto com muxcongos e rebolos, e os negros de Moçambique que Spix e Martius chamaram de macuas e angicos. A intensificação do tráfico de escravos para o Brasil no século XVIII, em função da mineração, multiplicou a presença de grupos originários da Costa da Mina e de Angola; no século XIX, até 1850, entrou também um número considerável de bantos da costa de Moçambique.
Do ponto de vista cultural, a influência dominante da cultura ioruba explica-se também pela sua predominância já na própria África, na região do golfo da Guiné, estendendo-se segundo Édison Carneiro até o interior do Sudão. Sua civilização mais adiantada surpreendeu os primeiros europeus, pelos trabalhos em bronze que faziam no reino do Benim. “A religião, a organização política e os costumes sociais de Ioruba davam o modelo a uma vasta zona. Os negros de Ioruba eram principalmente agricultores, mas os seus tecelões, os seus ferreiros, os seus artistas em cobre, ouro e madeira já gozavam de merecida reputação de excelência. Não havia abundância de animais de caça, mas a pesca, nos rios, nos lagos e no mar, rendia muito. Criavam-se animais de subsistência – cabras, carneiros, porcos, patos, galinhas e pombos. O cavalo era conhecido havia muitos séculos, devido ao contato com os árabes; o fundador do reino de Ioruba representava-se, nos mitos, montado num corcel.” Vários dos deuses africanos cultuados no Brasil são procedentes de algumas de suas brilhantes cidades, como Oió. Os nomes de alguns de seus reinos, como Ala Kêtu e ljexá, continuam como designativos de ritos de candomblé.
Quanto aos bantos de Angola, tinham uma agricultura mais primitiva, praticada pelas mulheres, enquanto os homens criavam gado. Diferentemente dos iorubas e outros sudaneses, que usavam tecidos de pano, os negros das margens do Zambeze e das elevações de Benguela vestiam-se de cascas de árvores (como o fariam no quilombo de Palmares); mais para o sudoeste, porém, usavam vestimentas de couro, possuindo hábitos de caçadores e armas de ferro.
O grande povoador de nosso território
O certo é que o negro (quer escravo, quer livre) foi o grande povoador do nosso território, empregando o seu trabalho desde as charqueadas do Rio Grande do Sul aos ervais do Paraná, engenhos e plantações do Nordeste, pecuária na Paraíba, atividades extrativas na Região Amazônica e na mineração de Goiás e Minas Gerais. E não apenas povoou, mas criou pequenas comunidades rurais em todo o território nacional através de quilombos, fundando núcleos populacionais, muitos dos quais existem até hoje. Ocupou os espaços sociais e econômicos que através do seu trabalho, dinamizavam o Brasil. No entanto, esse fato não contribuiu em nada para que o negro consiga um mínimo dessa renda em proveito próprio. Pelo contrário. Toda essa produção é enviada para o exterior, e os senhores de escravos ficam com todo o lucro da exportação e comercialização.
Engenho de cana. Henry Koster, BMSP
Após 1530, quando se pode falar realmente em colonização, com engenhos montados em São Vicente, iremos encontrar um dinamismo crescente na produção colonial brasileira. No século XVI a nossa produção anual de 300.000 arrobas de açúcar, já era superior à América espanhola, o que daria uma renda per capita das mais altas do Brasil em todos os tempos. A grande população negra escrava não participava da divisão desta riqueza.
O mesmo acontece no período da mineração. Minas Gerais desponta e consegue o seu apogeu até o último quartel do século XVIII, como uma nova e florescente etapa da exploração colonial, a mais importante, segundo as autoridades de Portugal. O negro é deslocado para preencher os vazios demográficos dessa nova faixa de trabalho. Não leva apenas o seu trabalho, contudo, mas a sua cultura, ensinando técnicas de metalurgia e mineração, aperfeiçoando métodos de trabalho, extraindo o ouro, procurando diamantes para proporcionar a riqueza dos contratadores e da Coroa portuguesa.
Mineradores. Rugendas, BMSP
O negro escravo em Minas Gerais, por questões particulares, sofre as mais violentas formas de controle no trabalho, é vigiado diariamente. Quando fugia, tinha toda uma milícia de capitães-do-mato para persegui-lo. Mesmo assim conseguia extrair do subsolo mineiro toda a riqueza que foi enviada para Portugal e se destinava ao pagamento da dívida que a metrópole havia contraído com a Inglaterra.
Extração de diamantes. Carlos Julião, MP.
Serro Frio. Carlos Julião, MP.
Por outro lado, o decréscimo da população negra escrava depois de 1850, quando é extinto o tráfico, deve-se à sua grande mortalidade, pois, segundo cálculos confiáveis, a média de “vida útil” do escravo era de 7 a 10 anos. Mesmo assim, a sua influência povoadora em toda a extensão do Brasil se fez e se faz sentir, conforme demonstram todos os recenseamentos que foram feitos. O negro foi o grande povoador da nação brasileira durante a sua evolução social e histórica.
O Negro escravo
As descrições de testemunhas variam, mas a realidade na sua essência é uma só: o negro escravo vivia como se fosse um animal. Não tinha nenhum direito, e pelas Ordenações do Reino podia ser vendido, trocado, castigado, mutilado ou mesmo morto sem que ninguém ou nenhuma instituição pudesse intervir em seu favor. Era uma propriedade privada, propriedade como qualquer outro semovente, como o porco ou o cavalo.
Castigos domésticos. Rugendas, BMSP
A alimentação, por seu turno, não era a de fartura que alguns autores descrevem, quando afirmam que o negro era o elemento mais bem-alimentado do Brasil Colonial. Pelo contrário. Vilhena, descrevendo o tipo de alimentação do escravo e o comportamento dos seus senhores no particular, pinta uma situação de calamidade alimentar, pois alguns desses nem comida davam aos seus cativos. No final do século XVIII ele assim descreve a situação dos escravos no particular:
[...] dever-se-ia de justiça e caridade providenciar sobre o bárbaro e cruel e inaudito modo como a maior parte dos senhores tratam os desgraçados escravos de trabalho. Tais há que não lhes dando sustento algum lhes facultam somente trabalharem no domingo ou dia santo em um pedacinho de terra a que chamam “roça” para daquele trabalho tirarem seu sustento para toda a semana acudindo somente com alguma gota de mel, o mais grosseiro, se é tempo de moagem.
Ainda sobre o mesmo assunto, Ademar Vidal, baseado em uma testemunha da época, afirma que:
A comida era jogada ao chão. Seminus, os escravos dela se apoderavam num salto de gato, comida misturada com areia, engolindo tudo sem mastigar porque não havia tempo a esperar diante dos mais espertos e vorazes.
Feitores castigando negros. Jean-Baptiste Debret
A jornada de trabalho era de catorze a dezesseis horas sob a fiscalização do feitor, que não admitia pausa ou distração. Quando um escravo era considerado preguiçoso ou insubordinado, aí vinham os castigos. O feitor, ou um escravo por ele designado, era o executor da sentença. Conforme a falta, havia um tipo de punição e de tortura. Mas a imaginação dos senhores não tinha limites, e muitos criavam os seus métodos e instrumentos de tortura próprios.
Os dois instrumentos de suplício mais usados eram o tronco e o pelourinho, onde eram aplicadas as penas de açoite. O primeiro poderemos colocar como símbolo da justiça privada, e o segundo como símbolo da justiça pública. Mas, de qualquer forma, a disciplina de trabalho imposta ao escravo baseava-se na violência contra a sua pessoa.
Ao escravo fugido encontrado em quilombo mandava-se ferrar com um F na testa e em caso de reincidência cortavam-lhe uma orelha.
O justiçamento do escravo era na maioria das vezes feito na própria fazenda pelo seu senhor, havendo casos de negros enterrados vivos, jogados em caldeirões de água ou azeite fervendo, castrados, deformados, além dos castigos corriqueiros, como os aplicados com a palmatória, o açoite, o vira-mundo, os anjinhos (também aplicados pelo capitão-do-mato quando o escravo capturado negava-se a informar o nome do seu dono) e muitas outras formas de coagir o negligente ou rebelde.
Divisão do trabalho
Na divisão social do trabalho, noventa por cento ou mais dos escravos eram destinados às atividades da agroindústria açucareira, atividades nas minas ou fazendas de café. Os outros eram os chamados escravos domésticos.
Esses escravos, assim distribuídos na hora do trabalho, findam a faina cotidiana, eram recolhidos às senzalas, onde se amontoavam sem nenhuma condição de higiene ou conforto. Os escravos que não eram do eito e do engenho, da faiscação ou plantação de café, trabalhavam na casa do senhor como mucamas, cozinheiras, cocheiros, carregadores de liteiras, transportadores de tigres, limpadores de estrebarias, moleques de recado, doceiras, amas-de-leite, parteiras, carregadores de lenha e inúmeras outras ocupações que faziam funcionar a casa grande.
O negro escravo atuava em todos os níveis da divisão do trabalho, não apenas plantando e/ou colhendo cana, mas participando das técnicas e profissões exigidas para a prosperidade e o dinamismo dos engenhos. Um grande número de pessoas se beneficiava, direta ou indiretamente, desse trabalho, como todo um rosário de membros parasitários, indo dos funcionários fiscalizadores, padres, hóspedes e parentes até especialmente o senhor de escravos.
Retorno de um proprietário à sua chácara. Debret, BMSP.
O fausto dessa economia, que permitia aos senhores importarem seda e vinho da França e o seu comportamento de verdadeiros nababos, tinham como único suporte o trabalho da escravaria, que vivia sob as formas mais violentas de controle social, num clima de terrorismo permanente, ou se rebelava e fugia para as matas, organizando quilombos, onde reencontrava a sua condição humana.
A Quilombagem
Entendemos por quilombagem o movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido pelos próprios escravos que se verificou durante o escravismo brasileiro em todo o território nacional. Movimento de mudança social provocado, ele foi uma força de desgaste significativa ao sistema escravista, solapou as suas bases em diversos níveis – econômico social e militar – e influiu poderosamente para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse substituído pelo trabalho livre.
A quilombagem é um movimento emancipacionista que antecede, em muito, o movimento liberal abolicionista; ela tem caráter mais radical, sem nenhum elemento de mediação entre o seu comportamento dinâmico e os interesses da classe senhorial. Somente a violência, por isso, poderá consolidá-la ou destruí-la. De um lado os escravos rebeldes; de outro os seus senhores e o aparelho de repressão a essa rebeldia.
O quilombo aparece, assim, como aquele módulo de resistência mais representativo (quer pela sua quantidade, quer pela sua continuidade histórica) que existiu. Estabelecia uma fronteira social, cultural e militar contra o sistema que oprimia o escravo, e se constituía numa unidade permanente e mais ou menos estável na proporção em que as forças repressivas agiam menos ou mais ativamente contra ele.
Dessa forma o quilombo é o centro organizacional da quilombagem, embora outros tipos de manifestações de rebeldia também apresentassem como as guerrilhas e diversas outras formas de protesto individuais ou coletivas. Entendemos, portanto, por quilombagem uma constelação de movimentos de protesto do escravo, tendo como centro organizacional o quilombo, do qual partiam ou para ele convergiam e se aliavam as demais formas de rebeldia. Incluímos, por esse motivo, no conceito geral de quilombagem outras manifestações de protesto racial e social, como por exemplo, as insurreições baianas do século XIX que culminam com a grande insurreição de 1835 em Salvador, que tanto pânico provocou entre as autoridades, forças militares e membros da população. Isto se explica não somente porque esses movimentos emancipacionistas escravos se inserem na mesma pauta de reivindicações dos quilombolas, mas também porque esses negros urbanos contavam como aliados os escravos refugiados nos diversos quilombos existentes na periferia de Salvador. Igualmente deverá ser incluído na quilombagem o bandoleirismo dos escravos fugidos, os quais em grupos ou isoladamente atacavam povoados e estradas. Desse bandoleirismo quilombola, os exemplos mais destacados são os de João Mulungu, em Sergipe, e Lucas da Feira, na Bahia, embora inúmeros outros tenham existido durante a escravidão em todo o território nacional. A quilombagem era, por isto, a manifestação mais importante, que expressava a contradição fundamental do regime escravista. Os senhores de escravos, por outro lado, não desdenhava a sua importância e se municiava de recursos (militares, políticos, jurídicos e terroristas) para combatê-la. O fenômeno da quilombagem tem como epicentro o quilombo, mas nele podem ser englobadas todas as manifestações de resistência da parte do escravo.
Por esses motivos é um movimento abrangente e radical. Nele se incluem não apenas negros fugitivos, mas também índios perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas perseguidas pela polícia em geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço militar, mulheres sem profissão, brancos pobres e prostitutas. A quilombagem articula-se nacionalmente, desde os primórdios da escravidão, atravessa todo o sistema escravista, desarticulando-o constantemente, e assume, muitas vezes, aspecto ameaçador para a classe senhorial, como no caso da República de Palmares.
Principais quilombos brasileirosBahia
1. Quilombo do rio Vermelho
2. Quilombo do Urubu
3. Quilombo de Jacuípe
4. Quilombo de Jaguaribe
5. Quilombo de Maragogipe
6. Quilombo de Muritiba
7. Quilombos de Campos de Cachoeira
8. Quilombos de Orobó, Tupim e Andaraí
9. Quilombos de Xiquexique
10. Quilombo do Buraco do tatu
11. Quilombo de Cachoeira
12. Quilombo de Nossa Senhora dos Mares
13. Quilombo do Cabula
14. Quilombos de Jeremoabo
15. Quilombo do rio Salitre
16. Quilombo do rio Real
17. Quilombo de Inhambuque
18. Quilombos de Jacobina até o rio São Francisco.
Nota: Stuart B. Schwartz conseguiu listar 35 quilombos na região da Bahia entre os séculos XVII, XVIII e XIX.
Sergipe
1. Quilombo de Capela
2. Quilombo de Itabaiana
3. Quilombo de Divina Pastora
4. Quilombo de Itaporanga
5. Quilombo do Rosário
6. Quilombo do Engenho do Brejo
7. Quilombo de Laranjeiras
8. Quilombo de Vila nova
9. Quilombo de São Cristóvão
10. Quilombo de Maroim
11. Quilombo de Brejo Grande
12. Quilombo de Estância
13. Quilombo de Rosário
14. Quilombo de Santa Luíza
15. Quilombo de Socorro
16. Quilombo do rio Cotinguiba
17. Quilombo do rio Vaza Barris
Pernambuco
1. Quilombo do Ibura
2. Quilombo de Nazareth
3. Quilombo de Catucá (extensão do Cova da Onça)
4. Quilombo do Pau Picado
5. Quilombo do Malunguinho
6. Quilombo de Terra Dura
7. Quilombo do Japomim
8. Quilombos de Buenos Aires
9. Quilombo do Palmar
10. Quilombos de Olinda
11. Quilombo do subúrbio do engenho Camorim
12. Quilombo de Goiana
13. Quilombo de Iguaraçu
Maranhão
1. Quilombo da lagoa Amarela (Preto Cosme)
2. Quilombo do Turiaçu
3. Quilombo de Maracaçamé
4. Quilombo de São Benedito do Céu
5. Quilombo do Jaraquariquera
Paraíba
1. Quilombo do Cumbe
2. Quilombo da serra de Capuaba
3. Quilombo de Gramame (Paratuba)
4. Quilombo do Livramento
Rio Grande do Sul
1. Quilombo do negro Lúcio (ilha dos Marinheiros)
2. Quilombo do Arroio
3. Quilombo da serra dos Tapes
4. Quilombo de Manuel Padeiro
5. Quilombo do município de Rio Pardo
6. Quilombo na serra do Distrito do Couto
7. Quilombo no município de Montenegro (?)
Nota: a interrogação posta depois do quilombo do município de Montenegro significa que as fontes informativas não são conclusivas quanto à sua existência; o quilombo de Manuel Padeiro é chamado, em algumas fontes, de Manuel Pedreiro.
Santa Catarina
1. Quilombo da Alagoa (Lagoa)
2. Quilombo da Enseada do Brito
3. Outros quilombos menores “que devem ter dado muito trabalho”.
Minas Gerais
1. Quilombo do Ambrósio (Quilombo Grande)
2. Quilombo do Campo Grande
3. Quilombo do Bambuí
4. Quilombo do Andaial
5. Quilombo do Careca
6. Quilombo do Sapucaí
7. Quilombo do morro de Angola
8. Quilombo do Paraíba
9. Quilombo do Ibituruna
10. Quilombo do Cabaça
11. Quilombo de Luanda ou Lapa do Quilombo
12. Quilombo do Guinda
13. Lapa do Isidoro
14. Quilombo do Brumado
15. Quilombo do Caraça
16. Quilombo do Inficionado
17. Quilombos de Suçuí e Paraopeba
18. Quilombos da serra de São Bartolomeu
19. Quilombos de Marcela
20. Quilombos da serra de Marcília
Nota: Carlos Magno Guimarães conseguiu listar 116 quilombos em minas Gerais no século XVIII.
São Paulo
1. Quilombos dos Campos de Araraquara
2. Quilombo da cachoeira do Tambau
3. Quilombos à margem do rio Tietê, no caminho de Cuiabá
4. Quilombo das cabeceiras do rio Corumateí
5. Quilombo de Moji-Guaçu
6. Quilombos de Campinas
7. Quilombo de Atibaia
8. Quilombo de Santos
9. Quilombo da Aldeia Pinheiros
10. Quilombo de Jundiaí
11. Quilombo de Itapetininga
12. Quilombo da fazenda Monjolinhos (São Carlos)
13. Quilombo de Água Fria
14. Quilombo de Piracicaba
15. Quilombo de Apiaí (de José de Oliveira)
16. Quilombo do Sítio do Forte
17. Quilombo do Canguçu
18. Quilombo do termo de Parnaíba
19. Quilombo da freguesia de Nazaré
20. Quilombo de Sorocaba
21. Quilombo do Cururu
22. Quilombo do Pai Felipe
23. Quilombo do Jabaquara
Rio de Janeiro
1. Quilombo de Manuel Congo
2. Quilombos às margens do rio Paraíba
3. Quilombos na serra dos Órgãos
4. Quilombos da região de Inhaúma
5. Quilombos dos Campos de Goitacazes
6. Quilombo do Leblon
7. Quilombo do morro do desterro
8. Bastilhas de Campos (quilombos organizados pelos abolicionistas daquela cidade)
Região Amazônica
1. Amapá: Oiapoque e Calçoene
2. Amapá: Mazagão
3. Pará: Alenquer (rio Curuá)
4. Pará: Óbidos (rio Trombetas e Cuminá)
5. Pará: Caxiu e Cupim
6. Alcobaça (hoje Tucuruí), Cametá (rio Tocantins)
7. Pará: Mocajuba (litoral atlântico do Pará)
8. Pará: Gurupi (atual divisa entre o Pará e o Maranhão)
9. Maranhão: Turiaçu (rio Maracaçume)
10. Maranhão: Turiaçu (rio Turiaçu)
11. Pará: Anajás (lagoa Mocambo, ilha de Marajó)
12. Margem do baixo Tocantins: Quilombo de Felipa Maria Aranha
Mato Grosso
1. Quilombo nas vizinhanças do Guaporé
2. Quilombo da Carlota (denominado posteriormente Quilombo do Piolho)
3. Quilombos à margem do rio Piolho
4. Quilombo de Pindaituba
5. Quilombo do Motuca
6. Quilombo de Teresa do Quariterê
República de Palmares
Essa pequena listagem bem demonstra como a quilombagem era um fenômeno nacional.
A quilombagem – até hoje estudada com um elemento secundário, esporádico ou mesmo irrelevante durante a escravidão -, à medida que os cientistas sociais avançam nas suas pesquisas, demonstra ter sido um elemento dos mais importantes no desgaste permanente, quer social, econômico e militar, no processo de substituir-se o trabalho escravo pelo assalariado.
A Cultura
O negro não apenas povoou o Brasil e deu-lhe prosperidade econômica através do seu trabalho. Trouxe, também, as suas culturas que deram o ethos fundamental da cultura brasileira.
Negros Serradores de tábuas. Jean-Baptiste Debret
Vindos de várias partes da África, os negros escravos trouxeram as suas diversas matrizes culturais que aqui sobreviveram e serviram como patamares de resistência social ao regime que os oprimia e queria transformá-los apenas em máquina de trabalho.
Com a instalação de um governo despótico escravista, capaz de manter a ordem contra as manifestações da quilombagem, as suas diversas culturas foram consideradas primitivas, exóticas e somente consentidas enquanto estivessem sob o controle do aparelho dominador. Durante a escravidão o negro transformou não apenas a sua religião, mas todos os padrões das suas culturas em uma cultura de resistência social. Aquele que não pode atacar frontalmente procura formas simbólicas ou alternativas para oferecer resistência a essas forças mais poderosas. Dessa forma o sincretismo assim chamado não foi à incorporação do mundo religioso do negro à religião dominadora, mas, pelo contrário, uma forma sutil de camuflar internamente os seus deuses para preservá-los da imposição da religião católica. Não havendo como fugir à religião oficial, num tempo em que existia o monopólio do poder político e o monopólio do poder religioso, pela classe senhorial e a igreja Católica respectivamente. Daí o mecanismo de defesa sincrético dos negros.
A mesma coisa aconteceu com as suas línguas. Não possuindo unidade lingüística, os africanos foram obrigados a criar uma que fosse comum para que pudessem entender. Os povos banto que chegaram em primeiro lugar e aqueles que habitavam a parte sudanesa da África, posteriormente, incorporaram ao nosso léxico milhares de vocábulos na estrutura do português. No entanto, ninguém, ou quase ninguém, viu essa incorporação como um fator de enriquecimento, mas, criou-se a palavra chulo para designar esses vocábulos.
Após a escravidão, os grupos negros que se organizaram como específicos, na sociedade de capitalismo dependente que a substituiu, também aproveitaram os valores culturais afro-brasileiros como instrumentos de resistência.
Isto não quer dizer que se conservassem puros, pois sofrem a influência aculturativa (isto é, branqueadora) do aparelho ideológico dominante. É uma luta ideológico-cultural que se trava em todos os níveis, ainda diante dos nossos olhos. O exemplo das escolas de samba, especialmente no Rio de Janeiro – que perderam a sua especificidade de protesto simbólico espontâneo de antigamente para se institucionalizarem, assumindo proporções de um colossalismo quantitativo e competitivo antipopular e subordinando-se a instituições ou grupos financiadores que as despersonalizaram inteira ou parcialmente do seu papel inicial -, exemplifica o que estamos afirmando.
Participação Política
O negro, escravo ou livre, participou em quase todos os movimentos sócio-políticos que se desenrolaram no Brasil durante a sua trajetória social e histórica. Sem nos referirmos aos quilombos, que também consideramos movimentos políticos independentes, dos próprios escravos. Nas lutas pela expulsão dos holandeses, nas lutas pela Independência e a sua consolidação, na Revolução Farroupilha, nos movimentos radicais da plebe rebelde, como a Cabanagem, no Pará, no Movimento Cabano, em Alagoas, ele esteve presente. Também na Inconfidência Mineira, na Inconfidência Baiana, para lembrarmos mais alguns a sua presença é incontestável como elemento majoritário ou como participante menor. Após o fim da escravidão e do império, o negro se incorporará aos movimentos da plebe, como em Canudos, na comunidade do beato Lourenço, e, mais destacadamente, na revolta de João Cândido.
Alforria
Uma comparação entre duas datas permite perceber a quantidade razoável de negros e mulatos forros ao longo do século do ouro. Em 1735, estes subiam a 1.420, sobre um total de 96.541 escravos (segundo o Códice Costa Matoso), o que representava uma porcentagem de 1,4% aproximadamente. Em 1786, os forros já constituíam 35% da população de cor, embora predominassem entre eles os mulatos.
Negras forras vivendo de seus trabalhos. Debret, BMSP
A principal explicação para esta elevada taxa de libertos se encontra na possibilidade de o negro comprar sua alforria. Comumente os senhores das lavras permitiam a seus trabalhadores catar ouro nas horas livres, nas faisqueiras de baixo rendimento, também chamadas zonas de “ouro podre” ou “distritos de livre mineração”. O produto era parcialmente usado para integrar a quota fixada como preço da liberdade. Em muitos outros casos, o negro escamoteava pepitas da jazida, escondendo-as no corpo, na roupa, no ânus ou nos cabelos, ou lavava o ouro em pó que eventualmente se colava na cabeleira, e acumulava o obtido por esse contrabando para depois adquirir a condição livre, ou pelo menos para comprar uma comida melhor que a farinha de milho, o toucinho e o feijão que lhe eram servidos. Reza a lenda que a igreja de Santa Ifigênia foi construída com o dinheiro da lavagem dos cabelos das negras na pia batismal. É importante lembrar que a fiscalização dos senhores e feitores era severa, o que deve ter coibido um bocado a prática acima. São conhecidas as terríveis humilhações sofridas pelos negros das lavras diamantíferas, obrigados a clisteres de pimenta malagueta pela suspeita de que engolissem alguma pedra. De qualquer maneira, as alforrias eram significativas para a sociedade das Gerais, e aumentaram quando as lavras mais importantes declinaram devido ao ônus que representaria alimentar muitos negros em jazida de baixa renda. Os homens de cor tornados libertos conseguiram em várias ocasiões uma ascensão social, como veremos mais adiante. Mas não se podem levar em excessiva conta figuras lendárias como Chico-Rei, ou brilhantes como Chica da Silva, para situar a posição do negro em Minas; não desaparecerem as mazelas da escravidão, nem as constantes injustiças: o funcionário José João Teixeira Coelho relatou em 1780 a atitude das autoridades judiciárias da capitania com relação aos escravos, falando, por exemplo, de um negro preso em Mariana, por simples suspeita de que fosse um fugitivo. .
Os capitães-do-mato muitas vezes apreendiam homens de cor, libertos ou não, e exigiam resgate por eles. As fugas constantes de escravos constituíam outro sintoma das dificuldades destes, a ponto de haver referência a elas como “um dos grandes problemas de Minas Gerais através do século XVIII”. Existiram muitos quilombos, alguns deles com centenas e até milhares de moradores. As penalidades tornaram-se aos poucos mais cruéis, dada à freqüência da ocorrência; ordem da Coroa de 1741 mandava marcar os fugitivos recambiados com uma letra F impressa a fogo na espádua, o que logo se tornou um símbolo de coragem e distinção entre a escravaria.
Na reincidência, o escravo deveria ter uma orelha cortada, e a pouca eficácia destas medidas levou os camaristas de Mariana a propor em 1755 que a fuga fosse punida com o corte do tendão de Aquiles, para que o incurso ficasse impedido de correr, mas não de trabalhar, capengando. Certa lucidez dos funcionários da administração pombalina impediu a adoção da medida, bem como de outras, propostas por autoridades locais, visando a impedir a compra da liberdade por cativos que arranjassem dinheiro para tanto. Apesar de tudo isso, o número surpreendente de alforrias no setecentismo mineiro resta como saldo favorável à idéia de uma mobilidade social, inexistente nos quadros coloniais anteriores, e que teve força naquela formação social específica.
O café e a decadência da escravidão
Em 1850 é extinto o tráfico de escravos. O açúcar, mercadoria de exportação que dera prosperidade à área de trabalho escravo no Nordeste, entrara em decadência no mercado mundial. O mesmo fenômeno de decadência também se manifesta em Minas Gerais e Goiás, pois a avidez da metrópole exaurira em menos de dois séculos quase toda a riqueza do subsolo daquela área. A fuga permanente do escravo que exigia a manutenção de um aparelho repressivo e de captura permanente também onerava o custo da produção. Inicia-se, assim, a crise do sistema escravista. Por outro lado, na segunda metade do século XIX uma nova cultura aparece no Sudeste com um dinamismo que surpreende e, ao mesmo tempo, exige uma quantidade cada vez maior de mão-de-obra: o café. Não havendo mais a possibilidade de importação de africanos, os fazendeiros do café do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas no início do surto usam o recurso de importar o negro escravo de outras províncias que já se encontravam decadentes, como Pernambuco, Bahia e Ceará. Essa necessidade de importação interprovincial desarticula novamente a população negra, que é deslocada para as novas áreas prósperas, muitas vezes vendo fragmentada a sua família, pois os seus membros podiam ser vendidos para senhores diferentes. Esse novo deslocamento da população negra escrava estava, por isto, subordinado aos senhores. Escreve neste sentido Emília Viotti da Costa:
Foi o café o grande responsável pelo aumento do número de escravos e pela modificação das estatísticas. São Paulo passará com o Rio e Minas a deter, em 1887, 50% da população escrava do país. Os lavradores que avançavam pelo interior do vale fluminense e se fixavam nas terras paulistas e mineiras não encontravam outra solução para o problema da mão-de-obra.
Na economia cafeeira o escravo, já não era mais aquela mercadoria barata e facilmente substituível do Brasil-Colônia, mas, pelo contrário, devia ser protegido, pois a sua inutilização iria onerar o custo da produção. O imigrante, cuja presença se fará sentir, não tinha aptidão pra o tipo de trabalho como ele era praticado nas fazendas cafeeiras. Ademais, era muito caro que o escravo e, enquanto não se conseguia estruturar uma campanha imigrantista, o preço do negro escravo aumentava no mercado.
Nessa fase o escravo passa a ser protegido. O capital investido no negro devia ser protegido e surgem as primeiras leis protetoras. A Lei do Sexagenário, a do ventre-Livre, a extinção da pena de açoite, a proibição de se venderem para senhores diferentes membros da mesma família escrava e outras são mecanismos que protegem mais a propriedade do senhor do que a pessoa do negro escravo. A Lei do Sexagenário, por exemplo, serviu para descartar a população escrava não produtiva, que apenas existia como sucata e dava despesas aos seus senhores. A Lei do ventre-Livre condicionava praticamente o ingênuo a viver até os vinte anos numa escravidão disfarçada trabalhando para o senhor.
A crise do sistema escravista entrava em sua última fase. Do ponto de vista estritamente econômico, capitais de nações européias mais desenvolvidas no sistema capitalista investiam nos ramos fundamentais, como transportes, iluminação, portos e bancos, criando uma contradição que irá aguçando-se progressivamente entre o trabalho livre e o escravo. Tudo isto irá culminar com a Guerra do Paraguai, na qual os negros serão envolvidos na sua grande maioria compulsoriamente, nela morrendo cerca de 90 000. Aqueles que fugiam ao cativeiro, apresentando-se como voluntários, acreditando na promessa imperial de libertá-los após o conflito, foram muitos deles reescravizados.
Essa grande sucção de mão-de-obra negra, provocada pela Guerra do Paraguai, abriu espaços ainda maiores para que o imigrante fosse aproveitado como trabalhador. Essa tática de enviar negros à guerra serviu, de um lado, para branquear a população brasileira e, de outro, para justificar a política imigrantista que era patrocinada por parcelas significativas do capitalismo nativo e pelo governo de D. Pedro II. Nessa fase poderemos ver duas tendências demográficas da população negra, escrava e livre: decréscimo numérico em conseqüência da guerra e do envelhecimento e falecimento de grande parte dos seus membros; concentração dessa população nas províncias de Minas, Rio de Janeiro e São Paulo. Nas demais províncias vemos uma economia estagnada, com uma população negra incorporando-se aos tipos regionais de exploração camponesa, pois os senhores não tinham excedentes monetários para investir na dinamização dessa economia decadente. O negro é, assim, naquelas áreas, incorporado a uma economia de miséria.
A Abolição
O título de “Redentora”, consagrado pelos áulicos da História oficialista à Princesa Isabel, não passa de mais uma falácia com que se costuma enganar nossos estudantes de História. A Abolição não proveio do bondoso coração da regente. Foi produto de uma luta violenta, sangrenta, cheia de heróis anônimos.
Foi produto também do desespero de uma monarquia decrépita, já desprovida de bases de apoio social, condenada, e que agiu como o afogado: agarrou-se a uma palha. Só que já era tarde demais.
Ao abolir a escravidão, estava o Império encostado à parede. “Que se vão os anéis e fiquem os dedos” parece ser sua linha de pensamento. Apenas, ao fazer isto, ignorava estar cometendo o suicídio político, pois perdeu o apoio do último setor social que ainda se interessava em prolongar sua agonia: os grandes latifundiários de café fluminenses e vale-paraibanos, escravistas até à medula. O Império não morreu em 15 de novembro de 1889. Morreu no dia 13 de maio de 1888, e seu atestado de óbito foi assinado pela Princesa Isabel. Dizia: “A partir desta data ficam libertos todos os escravos do Brasil. Revogam-se as disposições em contrário.”.
Abolição da escravidão. Angelo Agostini, IEBUSP.
Além dessas causas estruturais, fatores externos levam o sistema escravista a um impasse cuja solução foi a Abolição sem reformas. O dilema se apresentava diante dos fazendeiros: ou aceitavam a Abolição compromissada como o Trono queria, conservando-lhe os privilégios, ou correriam o risco de ver a Abolição feita pelos próprios escravos, através de medidas radicais, como a divisão das terras senhoriais. A concordata foi feita. O problema da mão-de-obra já estava praticamente resolvido com a importação de milhares de imigrantes. O trabalhador nacional descendente de africanos seria marginalizado e estigmatizado. O ideal de branqueamento das elites seria satisfeito, e as estruturas arcaicas de propriedade continuariam intocadas.
A Guarda Negra
O dia 14 de maio foi festivo para grande parte dos escravos que saíram das senzalas. Durante a euforia predominante, supuseram que haviam conquistado a liberdade e que os caminhos da cidadania estavam abertos para eles.
A princesa Isabel passou a ser, para a sua maioria, o símbolo da redenção do cativeiro. Os ex-escravos tinham como certa a sua equiparação aos demais cidadãos do Império. Houve uma parcela de negros que criou o isabelismo, pensamento que reivindicava a defesa da princesa regente por acreditarem que ela fosse a personalidade que os redimira da escravidão num ato de bondade pessoal.
José do Patrocínio foi o mais fervoroso adepto do isabelismo, e procurou aliciar libertos para defender a monarquia ameaçada pela onda republicana que crescera após a Abolição. Não satisfeito em beijar os pés da Redentora, José do Patrocínio inicia a arregimentação de ex-escravos, capoeiras e marginais de um modo geral, para fundar a Guarda Negra. Esse ajuntamento tinha como finalidade impedir a propaganda republicana, inclusive com a tarefa de dissolver comícios pela violência. Essa posição dos elementos aliciados por José do Patrocínio deu muito trabalho às autoridades e impediu, em muitos casos, que os adversários da monarquia se manifestassem. Os seus membros conseguiram dissolver muitos comícios republicanos através da violência.
Segundo registra a crônica da época, houve mesmo mortes em comícios republicanos pelas quais a Guarda Negra foi responsabilizada. Osvaldo Orico, biógrafo de José do Patrocínio, assim descreve a situação:
Incompreensível por um lado, mas explicável por outro, essa famigerada Guarda Negra tivera um inspirador. Não fora outro senão José do Patrocínio. O fanatismo abrira-lhe na alma a ilusão desse recurso com que imaginava cercar de garantias o prestígio da Redentora de sua raça. Foi a gratidão que o moveu a provocar e a sugerir um movimento de solidariedade dos libertos para com a padroeira inesquecível. E, ao toque de reunir, acorreu de todo lado os antigos sentenciados do cativeiro, ansiosos de oferecer com a força material do peito aberto a flor do seu reconhecimento heróico. Os acontecimentos registrados na capital e no interior, durante a fase em que se fez sentir a influência da Guarda Negra e se apelou para a sua incontida violência, mostraram como fora infeliz a idéia de arregimentar no antigo holocausto das senzalas a força que deveria guardar o Trono. Inaugurou-se uma época de terror que deu à nação enormes prejuízos em dinheiro e em vidas. Onde quer que brilhasse a centelha da luz republicana, surgia aí o conflito das raças, desencadeado pela fúria dos libertos em louvor à rainha. E amiudaram-se os atentados e morticínios. Na Rua do Passeio; em frente à Secretaria de justiça; em dias de março de 89, durante a agitação popular que a febre amarela e a falta de água provocaram, a Guarda Negra deixou indícios de sua lamentável influência.
Nas cidades de Campos e Lage do Murié, ainda segundo Osvaldo Orico, a Guarda Negra agiu com violência contra os republicanos:
Na primeira localidade em uma reunião republicana que se processava pacificamente, massa enorme de policiais e libertos abertos armados invadiu o edifício em que se realizava um banquete democrático, alarmou as senhoras, desrespeitou com ameaças a intervenção amistosa do pároco, que suplicava das janelas do templo ordem e clemência, disparou tiros, arremessou garrafas, espancou e feriu tudo isto para levantar entre acompanhamentos bélicos vivos e saudações à rainha. Na segunda, a polícia, após uma série de distúrbios, prendeu no tronco um honrado cidadão por suspeita de ideais republicanos.
A Guarda Negra era um movimento contraditório e confuso. Apoiava a monarquia porque os escravos conseguiram libertar-se do cativeiro através da magnanimidade da princesa Isabel. Via a Abolição como um ato de munificência social praticado pela regente, sem analisar as estratégias ocultas nessa medida e as conseqüências negativas que a Abolição traria, feita da forma inconclusa como o foi. Por outro lado, deixaram de pressionar os republicanos, especialmente os mais democratas, como Silva Jardim, no sentido de radicalizar o seu programa, exigindo reformas sociais e econômicas estruturais, como a distribuição da terra aos ex-escravos. Foi, portanto, um movimento conjuntural e reacionário, e o próprio José do Patrocínio, ao ver proclamada a República, foi um dos primeiros a aderir ao novo regime. Com isto, a Guarda Negra se desarticulou completamente logo depois da proclamação da República, vindo a desaparecer sem maiores conseqüências.
Nesse período de transição, os negros recém-saídos da escravidão passaram a se organizar de várias formas alternativas, especialmente em grupos de lazer, culturais ou esportivos. Por outro lado, levando-se em consideração a forma como a Abolição foi feita, descartando-os da participação naquelas reformas estruturais que as mudanças do momento estavam a exigir, as reminiscências do sistema escravista e da Redentora continuaram existindo como ideologia de apoio psicológico em diversos grupos negros de ex-escravos. Isto retardou ainda mais o processo, pois a Guarda Negra tinha uma ideologia de retrocesso, de volta ao passado e ao mesmo utópica (monarquia sem escravidão), quando devia exigir medidas de avanço social radicais.
A Imprensa Negra
A revolta dos marinheiros de João Cândido termina em 1911. Quatro anos depois tem início, em São Paulo, uma relevante manifestação de identidade étnica, das mais importantes pra conhecermos a trajetória do negro brasileiro na luta pela cidadania. Referimo-nos à chamada imprensa negra paulista, cujo primeiro jornal intitula-se O Menelick e começa a circular em 1915. Fenômeno dos mais significativos para se analisar o comportamento e a ideologia desse segmento negro urbano, os jornais editados por negros paulistas sucedem-se até 1963, quando é fechado o Correio d’Ébano.
Os negros paulistas, sentindo a necessidade de um movimento de identidade étnica, e enfrentando as barreiras de uma imprensa branca (Grande Imprensa) impermeável aos anseios e reivindicações da comunidade, recorreram à solução mais viável, que era fundar uma imprensa alternativa, na qual os seus desejos, as denúncias contra o racismo, bem como a sua vida associativa, cultural e social se refletissem.
Conforme dissemos, o primeiro desses órgãos foi O Menelick, que conseguiu grande prestígio na comunidade negra, difundindo aquilo que os seus redatores achavam mais interessantes para a vida social e cultural dos negros. Após o primeiro, outros se sucederam na seguinte ordem: A rua e O Xauter, 1916; O Alfinete, 1918; O Bandeirante, 1919; A Liberdade, 1919; A Sentinela, 1920; O Kosmos, 1922; O Getulino, 1923; O Clarim da Alvorada e Elite, 1924; Auriverde, O Patrocínio e O Progresso, 1928; Chibata, 1932; A Evolução e A Voz da Raça, 1933; O Clarim, O Estímulo, A Raça e Tribuna Negra, 1935; A Alvorada, 1936; Senzala, 1946; Mundo Novo, 1950; O Novo Horizonte, 1954; Notícias de Ébano, 1957; O Mutirão, 1958; Hífen e Niger, 1960; Nosso Jornal, 1961; e Correio d’Ébano, 1963.
Esse conjunto de periódicos que se sucede durante quase cinqüenta anos influirá significativamente na formação de uma ideologia étnica do negro paulista e irá influir, de certa maneira, no seu comportamento. Concentrando o seu noticiário nos acontecimentos da comunidade, divulgando a produção dos seus intelectuais nas páginas dessas publicações, aconselhando, orientando e criando, mesmo, um código moral puritana para ser obedecido pelos negros, essa imprensa “feita por negros para negros” marcou profundamente o pensamento do negro paulista.
Os seus sobreviventes, como José Correia Leite, Francisco Lucrécio e Aristides Barbosa ainda rememoram com nostalgia esse período. Esses jornais, mantidos pelos próprios grupos que os editavam e alguns membros da comunidade que se cotizavam para ajudá-los, constituíram um fato único no Brasil. A obstinação desses grupos negros em manterem um espaço ideológico e informativo independente, bem como a sua consciência étnica, determinou a sua continuidade, embora intermitente. Por outro lado, esses jornais também serviram de veículo organizacional dos negros. As discussões que se tratavam nas suas páginas, a colocação permanente dos problemas específicos da comunidade, as denúncias contra o racismo e a violência através de fatos concretos, tudo isso levou a que os negros de São Paulo fundassem o maior movimento político negro no Brasil: a Frente Negra Brasileira.
Esses jornais, conforme já dissemos, não refletiam nas suas páginas os grandes acontecimentos nacionais. Nada sabemos, pela sua leitura, da Coluna Prestes, da revolução de 1930, do movimento de 1932 em São Paulo, da revolta comunista de 1935 e de outros acontecimentos relevantes nesse período. Há, mesmo, uma certa cautela tática, pois neles também não se encontram notícias ou comentários sobre o movimento sindical, as lutas operárias, greves e a participação dos negros nesses eventos. Também não se encontram críticas ao governo. É uma imprensa altamente setorizada nas suas informações e dirigidas a um público altamente específico.
Os seus dois jornais mais importantes, O Clarim da Alvorada e A Voz da Raça, tiveram papel saliente e significativo no despertar da consciência étnica do negro paulista. O primeiro municiou a comunidade de dados e informações preciosos para que o negro se auto-identificasse na sua negritude. O segundo foi o órgão da Frente Negra Brasileira, movimento que marcou profundamente a consciência do negro, e elevou o nível de tomada de sua identidade étnica.
A frente Negra Brasileira
No bojo dessa movimentação ideológica da comunidade negra paulista, através dos seus jornais, surge a idéia da formação da Frente Negra Brasileira. Ela irá constituir-se em um movimento de caráter nacional, com repercussão internacional. Surgiu da obstinação de negros abnegados, como Francisco Lucrécio, Raul Joviano do Amaral, José Correia Leite (que, depois, dela se afastará por motivos ideológicos) e mais alguns.
Fundada em 16 de setembro de 1931, sua sede social central localizava-se na Rua Liberdade, na capital paulista. Sua estrutura organizacional já era bastante complexa, muito mais do que a quase inexistente dos jornais. Era dirigida por um Grande Conselho, constituído de 20 membros, selecionando-se, dentre eles, o Chefe e o Secretário. Havia, ainda, um Conselho Auxiliar, formado pelos Cabos Distritais da Capital.
Criou-se, ainda, uma milícia frente-negrina, organização paramilitar. Os seus componentes usavam camisas brancas e recebiam rígido tratamento, como se fossem soldados. Segundo um dos seus fundadores – Francisco Lucrécio -, a Frente Negra foi fundada ppor ele e outros companheiros embaixo de um poste de iluminação. Ainda segundo a mesma testemunha, no início houve muita incompreensão. Diziam que eles estavam fazendo racismo ao contrário. No entanto, com o tempo, os membros da Frente Negra foram adquirindo a confiança não apenas da comunidade, mas de toda a sociedade paulista. As próprias autoridades a respeitavam. Os seus membros possuíam uma carteira de identidade expedida pela entidade, com retratos de frente e perfil. Quando as autoridades policiais encontravam um negro com esse documento, respeitavam-no porque sabiam que na Frente Negra só entravam pessoas de bem. Ainda segundo depoimento de Francisco Lucrécio, conseguiam acabar com a discriminação racial que existia na então Força Pública de São Paulo. Até aquela data os negros não podiam entrar na corporação. A Frente Negra inscreveu mais de 400 negros, tendo muitos deles feito carreira militar. Por outro lado, havia divergências na comunidade negra em relação à ideologia da Frente, pois muitos não aceitavam a ideologia patrianovista (monarquista) que o seu primeiro presidente, Arlindo Veiga dos Santos, queria impor aos seus membros. Isso iria refletir na trajetória da entidade. Uma visão direitista levou muito dos seus adeptos a posições simpáticas em relação ao integralismo e ao nazismo.
Paradoxalmente, o conceito de raça é manipulado pelos frente-negrinos, que, no seu jornal A Voz da Raça, coloca como seu slogan “Deus, Pátria, Raça e Família”, que depois foi modificado. Era o slogan decalcado diretamente do “Deus, Pátria e Família”, da Ação Integralista. Apesar dessas contradições ideológicas, a Frente Negra se desenvolveu rapidamente, criando núcleos em vários Estados do Brasil. Milhares de negros, nas principais áreas do país, aderem ao seu ideário e passam a ser seus membros.
Em face dos êxitos alcançados, a Frente Negra resolveu transformar-se em partido político. Tinha todas as condições exigidas pela Justiça Eleitoral da época, e entrou com pedido nesse sentido em 1936. Sobre o assunto houve discussão entre os membros do Tribunal, que chegaram a alegar uma tendência racista na Frente. Finalmente o seu registro foi concedido. Durou pouco, porém. Logo em seguida, 1937, o golpe de Estado deflagrado por Getúlio Vargas implantando o Estado Novo dissolverá todos os partidos, entre eles a Frente Negra Brasileira.
Houve um trauma muito grande na comunidade que a acompanhava ou militava nos seus quadros. Milhares de negros sentiram-se desarvorados politicamente. Um dos seus fundadores, Raul Joviano do Amaral, tenta conservar a entidade, mudando-lhe o nome para União Negra Brasileira. Mas a situação geral do país não era favorável à vida associativa no Brasil, onde a repressão via atos subversivos em qualquer organização. O jornal A Voz da Raça deixa de circular. A censura é imposta a todos os órgãos de imprensa, e a União, que procurou substituir a Frente, morre melancolicamente, em 1938, exatamente quando se comemoravam 50 anos da Abolição.
Nova articulação
O interregno do Estado Novo inibiu a comunidade negra nacionalmente do ponto de vista organizacional e ideológico. Da mesma forma como as entidades populares e democráticas, sindicatos, associações culturais e outras ficaram sob a vigilância permanente dos órgãos de segurança e repressão, as organizações negras recuaram diante da situação. Passaram a se organizar como simples clubes de lazer, especialmente dançantes ou esportivos. Somente com a redemocratização, com a vitória dos Aliados e a derrota do nazismo, o negro começa a organizar-se outra vez de forma significativa. Assim, em 1945 foi fundado, no Rio de Janeiro, o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, o qual tinha como objetivos principais:
• A convocação de uma Assembléia Constituinte;
• Anistia ampla e incondicional para os crimes políticos e conexos;
• Extinção do Tribunal de Segurança Nacional;
• Intensificação do esforço de guerra;
• Liberdade de palavra escrita e falada;
• Liberdade de agremiação;
• Direito de voto aos membros das Forças Armadas sem distinção de postos e direito a sua participação na Assembléia Constituinte;
• Direito de voto nos navios mercantes;
• Reconhecimento do direito de greve;
• Atamento de relações diplomáticas com a URSS;
• Autonomia sindical;
• Direito de sindicalização para o trabalhador das organizações autárquicas;
• Assistência ao trabalhador rural;
• Direito de sindicalização para as empregadas domésticas;
• Liberdade de culto às religiões afro-brasileiras;
• Ensino gratuito;
• Punição às empresas que fazem seleção racial e de cor;
• Abolição das seleções raciais e de cor na diplomacia;
• Abolição da seleção de cor nas escolas militares;
• Participação do negro nos assuntos de colonização e imigração;
• Democratização de todas as organizações negras, aproximando-as das organizações dos brancos;
• Fazer a aproximação das escolas de samba, clubes dançantes, associações religiosas, livrando-as da exploração política e comercial;
• E criar escolas de alfabetização em todo o território nacional.
O Comitê propunha, ainda, a realização de um Congresso Popular Brasileiro, colaborar com o Congresso de Artistas Plásticos e também, entre outras coisas, o início de uma campanha para a construção de um monumento a José do Patrocínio. Nessa mesma conjuntura de redemocratização surge, em 1944, o Teatro Experimental do Negro, no Rio de Janeiro, liderado por Abdias do Nascimento. Ensaiou e apresentou peças, dinamizou a consciência da negritude brasileira e editou um jornal, Quilombo, no qual o pensamento do grupo e a proposta do TEN se apresentavam à opinião pública.
O TEN teve de experimentar grandes dificuldades, quer financeiras, quer ideológicas, suspendendo as suas atividades no palco, mas sempre procurando levantar o problema do negro. Nesse sentido, o TEN organizou o Instituto Nacional do Negro e ao mesmo tempo procurou imprimir às suas atividades um conteúdo de elite cultural negra. Sob sua influência foi convocada a Conferência Nacional do Negro, em 1949. Por essa mesma época o poeta Solano Trindade, que vinha já de atividades anteriores como fundador, em 1936, de um Centro de Cultura Afro-Brasileira, antigo participante da Frente Negra Brasileira em Pernambuco e criador de um grupo de arte popular no Rio Grande do Sul, procuram fundar, no Rio de Janeiro, em 1945, o Teatro do Povo. Essa sua idéia não teve êxito em conseqüência de dificuldades financeiras e ideológicas que surgiram. Reúne-se a Haroldo Costa em 1948 para formarem o Teatro Folclórico Brasileiro, dele no entanto se afastando quando o empresário Askanasi transformou-o em uma empresa meramente comercial. Ainda no sentido de organizar o negro culturalmente, fundou juntamente com Edison Carneiro e Dirceu de Oliveira o Teatro Popular Brasileiro, composto de artífices, operários de fábricas, domésticas e pessoas de outras camadas populares. Com esse grupo viajou ao exterior, obtendo êxito em várias capitais européias. O Teatro Popular, no entanto, dispersou-se logo após o seu regresso. Solano Trindade, em São Paulo, tenta reorganizá-lo, continuando com exibições esporádicas até a sua morte.
Por outro lado, não devemos nos esquecer das organizações negras que se articularam durante muito tempo e continuamente, atravessando os períodos de crise aguda da sociedade brasileira. No interior de São Paulo, especialmente, essas entidades funcionaram sem solução de continuidade durante muitos anos e existem até hoje em número calculado em mais de cem. Temos como exemplos as que funcionam como clubes de lazer nas cidades de Campinas, Sorocaba, Piracicaba, São Carlos, Jundiaí, Araraquara, Catanduva e em outras cidades, muitas delas fundadas há mais de trinta há até cinqüenta anos.
Renascimento
Após 1954 há um renascimento do negro, na capital de São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras capitais, que possibilita a se organizarem em entidades significativas. Em dezembro de 1954, em São Paulo, foi organizada a Associação Cultural do Negro na Rua São Bento. O seu presidente era Geraldo Campos de Oliveira; vice-presidente, Américo Orlando da Costa. Sua direção era composta de uma Diretoria Executiva, com oito membros, e um Conselho Superior, presidido por José Correia Leite (um veterano líder, fundador do Clarim da Alvorada), e tendo como secretário Américo Santos. O seu Conselho compunha-se de 29 membros. A ACN possuía departamentos de Cultura, Esporte, Estudantil, Feminino, e uma Comissão de Recreação. Geraldo Campos de Oliveira dinamizou as atividades da associação e editou um Caderno de Cultura Negra. Em 1958 a entidade centrou as suas atividades no registro dos 70 anos da Abolição. A ela juntaram-se, para realizar esses atos, o Teatro Experimental do Negro (de São Paulo); o Teatro Popular Brasileiro, de Solano Trindade; a Associação Paulista dos Amigos do homem do Norte e do Nordeste; o Grêmio Estudantil Castro Alves; a Sociedade Recreativa José do Patrocínio de São Miguel; e o Fidalgo Club.
Discutiu-se, na época, qual deveria ser a ideologia que o negro devia adotar para a sua libertação étnica, desdobrando-se esse debate em diversos níveis, que iam do cultural ao político. Esse aspecto de polêmica ideológica vai desaparecendo especialmente a partir do golpe militar de 1964.
A ACN, depois de algum tempo inativa, muda-se, em 13 de maio de 1977, para o bairro da Casa Verde, com objetivos mais assistenciais e filantrópicos do que de reivindicações ideológicas. Criou uma escola, com cursos de alfabetização e madureza que funcionavam gratuitamente. Apesar de tudo isto, a Associação Cultural do Negro não tem mais o seu ethos inicial, tendo de fechar as suas portas.
Devemos salientar, também, o funcionamento das escolas de samba que serviam e servem de veículos de organização cultural do negro, centenas de pequenos clubes, recreativos ou com outras finalidades, espalhados em todo o território nacional, além de terreiros de Candomblé, Xangô, Macumba e Umbanda, que servem também para agrupar o negro brasileiro. Uma verdadeira teia nacional desses grupos mantém o negro unido e cria condições para a preservação da sua memória afro-brasileira.
Por outro lado, a situação do Brasil durante o golpe militar que foi instaurado no país impossibilitou qualquer diálogo democrático entre esses grupos negros e as autoridades autoritárias que sempre os viram com desconfiança acreditando serem pontos de subversão.
Em conseqüência da saída dos militares do poder, fundam-se organizações mais estruturadas, que retomam a tradição de uma posição de luta étnica e cultural. Essas organizações articulam-se e promovem uma série de atividades culturais, sociais e recreativas, tomando, de vez em quando, posições abertas contra o preconceito racial. A unificação dessas organizações deu-se, finalmente, a partir do dia 18 de junho de 1978, quando da realização de um ato público de protesto nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. Os fatos que determinaram a sua convocação foram a morte do trabalhador negro Róbson Silveira da Luz, no mês de maio, devido a torturas em uma delegacia de guaianases, na capital de São Paulo; a expulsão, no mês de maio, de quatro atletas juvenis negros do Clube de Regatas Tietê; e, finalmente, o assassinato por um policial, no bairro paulistano da Lapa, de Nilton Lourenço, operário negro.
Durante esse ato foi criado o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, depois abreviado para Movimento Negro Unificado. A partir daí várias outras organizações de militantes surgiram no Brasil inteiro e atualmente reivindicam o fim do racismo e da exploração econômica, social e cultural do negro. Mas esta é uma história que ainda está sendo vivida, para depois ser contada.
Esta história começa com a chegada das primeiras levas de escravos vindos da África. Isto se dá por volta de 1549, quando o primeiro contingente é desembarcado em São Vicente. D. João III concedeu autorização a fim de que cada colono importasse até 120 africanos para as suas propriedades. Muitos desses colonos, no entanto, protestaram contra o limite estabelecido pelo rei, pois desejavam importar um número bem superior. Por outro lado, alguns historiadores acham que bem antes dessa data já haviam entrado negros no Brasil. Afirmam mesmo que na nau Bretoa, para aqui enviada em 1511 por Fernando de Noronha, já se encontravam negros no seu bordo.
A consolidação da economia colonial intensificou o tráfico de africanos para o Brasil, especialmente para o Nordeste, onde um tipo de agroindústria se concentrou e floresceu com o cultivo da cana-de-açúcar.
Em 1586, na Colônia, as estimativas davam uma população de cerca de 57.000 habitantes – e deste total 25.000 eram brancos, 18.000 índios e 14.000 negros. Em 1798, segundo o cálculo de Santa Apolônia, para uma população de 3.250.000 habitantes, havia um total de 1.582.000 escravos, dos quais 221.000 pardos e 1.361.000 negros, sem contarmos os negros libertos, que ascendiam a 406.000. Prosseguindo a chegada de africanos, aumentava o seu peso demográfico no total da população brasileira. Para o biênio 1817-1818, as estimativas de Veloso de Oliveira davam, para um total de 3.817.000 habitantes, a cifra de 1.930.000 escravos, dos quais 202.000 pardos e 1.361.000 negros. Havia, também, uma população de negros e pardos livres que chegava a 585.000. No século XVIII, o qual, segundo o historiador Pandiá Calógeras, foi o de maior importação de africanos, a média teria chegado a 55.000 entrados anualmente. Essa massa populacional negro-africana, embora se concentrando especialmente na região nordestina, se espraiará, em maior ou menor quantidade, por todo o território nacional.
Embora não tenhamos possibilidades de estabelecer o número exato de africanos importados pelo tráfico, podemos fazer várias estimativas. Elas variam muito e há sempre uma tendência de se diminuir esse número, em parte por falta de estatísticas e também porque muitos historiadores procuram branquear a nossa população. Essas discussões sobre o número de africanos entrados no Brasil se reacenderam quando se procurou quantificar essa população escrava, e posteriormente a afro-brasileira, para com isto estabelecer-se o padrão do que se poderia chamar de homem brasileiro. A apuração da nossa realidade étnica excluiria o branco como representativo do nosso homem. Daí se procurar subestimar o negro no passado e a sua significação atual.
A Viagem da costa da África à América do Sul
O reverendo Henry Koster descreve as condições desse comércio. Embora ele tenha escrito sobre o tráfico no século XIX, suas observações merecem ser transcritas, pois não houve mudanças significativas nos hábitos dos negreiros: “Como a viagem da costa da África às costas da América do Sul é usualmente curta, pois os ventos estão sujeitos à pequena variação e o tempo é comumente bom, os navios empregados nesse tráfico são, de modo geral, pequenos e não de ótima construção… Os navios negreiros eram a princípio superlotados a um ponto incrível e não havia meios de evitá-lo. Fez-se, porém, uma lei com o fim de restringir o número de pessoas em cada navio. Sou levado a crer, que não se dá atenção a esse regulamento…”.
Depois de vários dias em porões infectos, onde morriam aos magotes, os negros sobreviventes (que às vezes não passavam da metade dos inicialmente embarcados) eram expostos na cidade.
Mercado de escravos. Debret, BMSP
“Os escravos são colocados nas ruas diante das portas dos proprietários”… deitados ou sentados em promiscuidade pelos caminhos, em número que atinge às vezes a duzentos ou trezentos. Os homens usam ao redor da cinta um pedaço de pano azul, puxado entre as pernas e preso nas costas. As mulheres recebem um pedaço maior de pano, que é usado como saia; e às vezes dão-lhes outro, com o fim de cobrir a parte superior do corpo… a vista dessa gente, Deus de bondade! é a coisa mais horrível do mundo. Eles, porém, não parecem sentir mais que o desconforto da situação. Seu alimento é carne salgada, farinha de mandioca, feijão e às vezes banana da terra. A comida de cada dia é cozida no meio da rua, em enormes caldeirões. À noite, os escravos são conduzidos a um ou mais armazéns e o condutor fica de pé, contando-os à medida que eles passam. São trancados; e a porta é aberta de novo ao romper do dia seguinte. O desejo dessas míseras criaturas, de escapar a este estado de inação e desconforto, manifesta-se quando aparece um comprador. De bom grado se levantam para serem colocados em fila, com o fim se serem examinadas e tratadas como gado… Nunca vi qualquer demonstração de pesar ao se separarem um dos outros; mas atribuo este fato a um sentimento de resignação, ou antes, de desesperança, que reprime toda mostra de pesar, que os prepara para o pior, tornando-se indiferentes ao que possa acontecer. Além disso, não é freqüente que uma família seja trazida junta: a separação de parentes e amigos se fez na África. É entre a parte mais jovem do grupo exposto à venda que o prazer pela mudança de situação é especialmente visível; os negros mais velhos fazem o que o condutor deseja, usualmente de modo impassível. Existe uma espécie de parentesco entre os indivíduos trazidos no mesmo navio. Chamam-se uns aos outros de malungos e este termo é muito considerado entre eles. “O comprador dá a cada um dos seus escravos recém-comprados um grande pano de baeta e um chapéu de palha e leva-os o mais depressa possível para a sua fazenda”.
Principais Áreas de Procedência dos Africanos
A questão da procedência dos africanos para o Brasil tornou-se bastante complexa, principalmente no tocante aos povos e etnias que forneceram os maiores contingentes de escravos. A complexidade decorre da mentalidade colonialista dos portugueses que, não considerando o negro um ser humano, pouca importância davam a assinalar de maneira precisa, nos seus registros e documentos, as diversas culturas, línguas e grupos étnicos dos africanos capturados. Ao contrário, estendiam a povos radicalmente distintos um mesmo nome, ou generalizações completamente sem fundamento.
Atualmente a antropologia tem revisto muito do que se escreveu sobre as origens culturais da massa escrava, no começo deste século, restando ainda muitos pontos a esclarecer.
Tradição historiográfica reúne, a grosso modo, os negros em dois grandes grupos étnicos: os bantos (ou bantus), da África equatorial e tropical, da região do golfo da Guiné, Congo e Angola, planaltos da África oriental e costa sul-oriental; e os sudaneses, predominantes na África ocidental, Sudão egípcio e na costa setentrional do golfo da Guiné. Não há nenhuma prova definitiva da predominância de um desses grupos na composição dos negros vindos para o Brasil, embora se afirme normalmente que a maioria era de bantos. Entretanto, as tradições culturais de alguns grupos sudaneses, como os iorubas da Nigéria, são amplamente predominantes nas heranças africanas da cultura brasileira.
Nina Rodrigues percebeu pela primeira vez a predominância sudanesa na Bahia, no que foi confirmado por Artur Ramos. Este destacou no grande grupo a predominância dos iorubas, também chamados nagôs (embora esse nome seja normalmente estendido a outras etnias) da Nigéria, dos gegés (ewes) do Daomé, dos minas da costa norte-guineana, além dos tapas, bornus e galinhas; identificou a presença importante dos hauçás do noroeste da Nigéria, de influência muçulmana, a qual marcou também os fulas (mais claros, de origem berbere-etiópica) e os malês (ou mandingas, de tradição guerreira, considerados altivos e perigosos pelos lusos, que lhes atribuíam feitiçarias). Entre os sudaneses originários da costa da Guiné, amplamente predominantes como vimos a presença comum da língua pertencente ao grupo lingüístico ioruba talvez explique a predominância dos elementos dessa cultura em nosso candomblé e nas influências negras de nossa linguagem.
Havia sudaneses em outros pontos do Brasil, mas talvez houvesse uma predominância banto no centro-sul e no norte. Artur Ramos indica como pontos iniciais de entrada das várias nações bantos os mercados de escravos de Pernambuco (extensivos a Alagoas), Rio de Janeiro (servindo a Minas e São Paulo) e Maranhão. Entre os povos desse grupo, os mais importantes no Brasil foram os cabindas do Congo, os banguelas de Angola, junto com muxcongos e rebolos, e os negros de Moçambique que Spix e Martius chamaram de macuas e angicos. A intensificação do tráfico de escravos para o Brasil no século XVIII, em função da mineração, multiplicou a presença de grupos originários da Costa da Mina e de Angola; no século XIX, até 1850, entrou também um número considerável de bantos da costa de Moçambique.
Do ponto de vista cultural, a influência dominante da cultura ioruba explica-se também pela sua predominância já na própria África, na região do golfo da Guiné, estendendo-se segundo Édison Carneiro até o interior do Sudão. Sua civilização mais adiantada surpreendeu os primeiros europeus, pelos trabalhos em bronze que faziam no reino do Benim. “A religião, a organização política e os costumes sociais de Ioruba davam o modelo a uma vasta zona. Os negros de Ioruba eram principalmente agricultores, mas os seus tecelões, os seus ferreiros, os seus artistas em cobre, ouro e madeira já gozavam de merecida reputação de excelência. Não havia abundância de animais de caça, mas a pesca, nos rios, nos lagos e no mar, rendia muito. Criavam-se animais de subsistência – cabras, carneiros, porcos, patos, galinhas e pombos. O cavalo era conhecido havia muitos séculos, devido ao contato com os árabes; o fundador do reino de Ioruba representava-se, nos mitos, montado num corcel.” Vários dos deuses africanos cultuados no Brasil são procedentes de algumas de suas brilhantes cidades, como Oió. Os nomes de alguns de seus reinos, como Ala Kêtu e ljexá, continuam como designativos de ritos de candomblé.
Quanto aos bantos de Angola, tinham uma agricultura mais primitiva, praticada pelas mulheres, enquanto os homens criavam gado. Diferentemente dos iorubas e outros sudaneses, que usavam tecidos de pano, os negros das margens do Zambeze e das elevações de Benguela vestiam-se de cascas de árvores (como o fariam no quilombo de Palmares); mais para o sudoeste, porém, usavam vestimentas de couro, possuindo hábitos de caçadores e armas de ferro.
O grande povoador de nosso território
O certo é que o negro (quer escravo, quer livre) foi o grande povoador do nosso território, empregando o seu trabalho desde as charqueadas do Rio Grande do Sul aos ervais do Paraná, engenhos e plantações do Nordeste, pecuária na Paraíba, atividades extrativas na Região Amazônica e na mineração de Goiás e Minas Gerais. E não apenas povoou, mas criou pequenas comunidades rurais em todo o território nacional através de quilombos, fundando núcleos populacionais, muitos dos quais existem até hoje. Ocupou os espaços sociais e econômicos que através do seu trabalho, dinamizavam o Brasil. No entanto, esse fato não contribuiu em nada para que o negro consiga um mínimo dessa renda em proveito próprio. Pelo contrário. Toda essa produção é enviada para o exterior, e os senhores de escravos ficam com todo o lucro da exportação e comercialização.
Engenho de cana. Henry Koster, BMSP
Após 1530, quando se pode falar realmente em colonização, com engenhos montados em São Vicente, iremos encontrar um dinamismo crescente na produção colonial brasileira. No século XVI a nossa produção anual de 300.000 arrobas de açúcar, já era superior à América espanhola, o que daria uma renda per capita das mais altas do Brasil em todos os tempos. A grande população negra escrava não participava da divisão desta riqueza.
O mesmo acontece no período da mineração. Minas Gerais desponta e consegue o seu apogeu até o último quartel do século XVIII, como uma nova e florescente etapa da exploração colonial, a mais importante, segundo as autoridades de Portugal. O negro é deslocado para preencher os vazios demográficos dessa nova faixa de trabalho. Não leva apenas o seu trabalho, contudo, mas a sua cultura, ensinando técnicas de metalurgia e mineração, aperfeiçoando métodos de trabalho, extraindo o ouro, procurando diamantes para proporcionar a riqueza dos contratadores e da Coroa portuguesa.
Mineradores. Rugendas, BMSP
O negro escravo em Minas Gerais, por questões particulares, sofre as mais violentas formas de controle no trabalho, é vigiado diariamente. Quando fugia, tinha toda uma milícia de capitães-do-mato para persegui-lo. Mesmo assim conseguia extrair do subsolo mineiro toda a riqueza que foi enviada para Portugal e se destinava ao pagamento da dívida que a metrópole havia contraído com a Inglaterra.
Extração de diamantes. Carlos Julião, MP.
Serro Frio. Carlos Julião, MP.
Por outro lado, o decréscimo da população negra escrava depois de 1850, quando é extinto o tráfico, deve-se à sua grande mortalidade, pois, segundo cálculos confiáveis, a média de “vida útil” do escravo era de 7 a 10 anos. Mesmo assim, a sua influência povoadora em toda a extensão do Brasil se fez e se faz sentir, conforme demonstram todos os recenseamentos que foram feitos. O negro foi o grande povoador da nação brasileira durante a sua evolução social e histórica.
O Negro escravo
As descrições de testemunhas variam, mas a realidade na sua essência é uma só: o negro escravo vivia como se fosse um animal. Não tinha nenhum direito, e pelas Ordenações do Reino podia ser vendido, trocado, castigado, mutilado ou mesmo morto sem que ninguém ou nenhuma instituição pudesse intervir em seu favor. Era uma propriedade privada, propriedade como qualquer outro semovente, como o porco ou o cavalo.
Castigos domésticos. Rugendas, BMSP
A alimentação, por seu turno, não era a de fartura que alguns autores descrevem, quando afirmam que o negro era o elemento mais bem-alimentado do Brasil Colonial. Pelo contrário. Vilhena, descrevendo o tipo de alimentação do escravo e o comportamento dos seus senhores no particular, pinta uma situação de calamidade alimentar, pois alguns desses nem comida davam aos seus cativos. No final do século XVIII ele assim descreve a situação dos escravos no particular:
[...] dever-se-ia de justiça e caridade providenciar sobre o bárbaro e cruel e inaudito modo como a maior parte dos senhores tratam os desgraçados escravos de trabalho. Tais há que não lhes dando sustento algum lhes facultam somente trabalharem no domingo ou dia santo em um pedacinho de terra a que chamam “roça” para daquele trabalho tirarem seu sustento para toda a semana acudindo somente com alguma gota de mel, o mais grosseiro, se é tempo de moagem.
Ainda sobre o mesmo assunto, Ademar Vidal, baseado em uma testemunha da época, afirma que:
A comida era jogada ao chão. Seminus, os escravos dela se apoderavam num salto de gato, comida misturada com areia, engolindo tudo sem mastigar porque não havia tempo a esperar diante dos mais espertos e vorazes.
Feitores castigando negros. Jean-Baptiste Debret
A jornada de trabalho era de catorze a dezesseis horas sob a fiscalização do feitor, que não admitia pausa ou distração. Quando um escravo era considerado preguiçoso ou insubordinado, aí vinham os castigos. O feitor, ou um escravo por ele designado, era o executor da sentença. Conforme a falta, havia um tipo de punição e de tortura. Mas a imaginação dos senhores não tinha limites, e muitos criavam os seus métodos e instrumentos de tortura próprios.
Os dois instrumentos de suplício mais usados eram o tronco e o pelourinho, onde eram aplicadas as penas de açoite. O primeiro poderemos colocar como símbolo da justiça privada, e o segundo como símbolo da justiça pública. Mas, de qualquer forma, a disciplina de trabalho imposta ao escravo baseava-se na violência contra a sua pessoa.
Ao escravo fugido encontrado em quilombo mandava-se ferrar com um F na testa e em caso de reincidência cortavam-lhe uma orelha.
O justiçamento do escravo era na maioria das vezes feito na própria fazenda pelo seu senhor, havendo casos de negros enterrados vivos, jogados em caldeirões de água ou azeite fervendo, castrados, deformados, além dos castigos corriqueiros, como os aplicados com a palmatória, o açoite, o vira-mundo, os anjinhos (também aplicados pelo capitão-do-mato quando o escravo capturado negava-se a informar o nome do seu dono) e muitas outras formas de coagir o negligente ou rebelde.
Divisão do trabalho
Na divisão social do trabalho, noventa por cento ou mais dos escravos eram destinados às atividades da agroindústria açucareira, atividades nas minas ou fazendas de café. Os outros eram os chamados escravos domésticos.
Esses escravos, assim distribuídos na hora do trabalho, findam a faina cotidiana, eram recolhidos às senzalas, onde se amontoavam sem nenhuma condição de higiene ou conforto. Os escravos que não eram do eito e do engenho, da faiscação ou plantação de café, trabalhavam na casa do senhor como mucamas, cozinheiras, cocheiros, carregadores de liteiras, transportadores de tigres, limpadores de estrebarias, moleques de recado, doceiras, amas-de-leite, parteiras, carregadores de lenha e inúmeras outras ocupações que faziam funcionar a casa grande.
O negro escravo atuava em todos os níveis da divisão do trabalho, não apenas plantando e/ou colhendo cana, mas participando das técnicas e profissões exigidas para a prosperidade e o dinamismo dos engenhos. Um grande número de pessoas se beneficiava, direta ou indiretamente, desse trabalho, como todo um rosário de membros parasitários, indo dos funcionários fiscalizadores, padres, hóspedes e parentes até especialmente o senhor de escravos.
Retorno de um proprietário à sua chácara. Debret, BMSP.
O fausto dessa economia, que permitia aos senhores importarem seda e vinho da França e o seu comportamento de verdadeiros nababos, tinham como único suporte o trabalho da escravaria, que vivia sob as formas mais violentas de controle social, num clima de terrorismo permanente, ou se rebelava e fugia para as matas, organizando quilombos, onde reencontrava a sua condição humana.
A Quilombagem
Entendemos por quilombagem o movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido pelos próprios escravos que se verificou durante o escravismo brasileiro em todo o território nacional. Movimento de mudança social provocado, ele foi uma força de desgaste significativa ao sistema escravista, solapou as suas bases em diversos níveis – econômico social e militar – e influiu poderosamente para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse substituído pelo trabalho livre.
A quilombagem é um movimento emancipacionista que antecede, em muito, o movimento liberal abolicionista; ela tem caráter mais radical, sem nenhum elemento de mediação entre o seu comportamento dinâmico e os interesses da classe senhorial. Somente a violência, por isso, poderá consolidá-la ou destruí-la. De um lado os escravos rebeldes; de outro os seus senhores e o aparelho de repressão a essa rebeldia.
O quilombo aparece, assim, como aquele módulo de resistência mais representativo (quer pela sua quantidade, quer pela sua continuidade histórica) que existiu. Estabelecia uma fronteira social, cultural e militar contra o sistema que oprimia o escravo, e se constituía numa unidade permanente e mais ou menos estável na proporção em que as forças repressivas agiam menos ou mais ativamente contra ele.
Dessa forma o quilombo é o centro organizacional da quilombagem, embora outros tipos de manifestações de rebeldia também apresentassem como as guerrilhas e diversas outras formas de protesto individuais ou coletivas. Entendemos, portanto, por quilombagem uma constelação de movimentos de protesto do escravo, tendo como centro organizacional o quilombo, do qual partiam ou para ele convergiam e se aliavam as demais formas de rebeldia. Incluímos, por esse motivo, no conceito geral de quilombagem outras manifestações de protesto racial e social, como por exemplo, as insurreições baianas do século XIX que culminam com a grande insurreição de 1835 em Salvador, que tanto pânico provocou entre as autoridades, forças militares e membros da população. Isto se explica não somente porque esses movimentos emancipacionistas escravos se inserem na mesma pauta de reivindicações dos quilombolas, mas também porque esses negros urbanos contavam como aliados os escravos refugiados nos diversos quilombos existentes na periferia de Salvador. Igualmente deverá ser incluído na quilombagem o bandoleirismo dos escravos fugidos, os quais em grupos ou isoladamente atacavam povoados e estradas. Desse bandoleirismo quilombola, os exemplos mais destacados são os de João Mulungu, em Sergipe, e Lucas da Feira, na Bahia, embora inúmeros outros tenham existido durante a escravidão em todo o território nacional. A quilombagem era, por isto, a manifestação mais importante, que expressava a contradição fundamental do regime escravista. Os senhores de escravos, por outro lado, não desdenhava a sua importância e se municiava de recursos (militares, políticos, jurídicos e terroristas) para combatê-la. O fenômeno da quilombagem tem como epicentro o quilombo, mas nele podem ser englobadas todas as manifestações de resistência da parte do escravo.
Por esses motivos é um movimento abrangente e radical. Nele se incluem não apenas negros fugitivos, mas também índios perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas perseguidas pela polícia em geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço militar, mulheres sem profissão, brancos pobres e prostitutas. A quilombagem articula-se nacionalmente, desde os primórdios da escravidão, atravessa todo o sistema escravista, desarticulando-o constantemente, e assume, muitas vezes, aspecto ameaçador para a classe senhorial, como no caso da República de Palmares.
Principais quilombos brasileirosBahia
1. Quilombo do rio Vermelho
2. Quilombo do Urubu
3. Quilombo de Jacuípe
4. Quilombo de Jaguaribe
5. Quilombo de Maragogipe
6. Quilombo de Muritiba
7. Quilombos de Campos de Cachoeira
8. Quilombos de Orobó, Tupim e Andaraí
9. Quilombos de Xiquexique
10. Quilombo do Buraco do tatu
11. Quilombo de Cachoeira
12. Quilombo de Nossa Senhora dos Mares
13. Quilombo do Cabula
14. Quilombos de Jeremoabo
15. Quilombo do rio Salitre
16. Quilombo do rio Real
17. Quilombo de Inhambuque
18. Quilombos de Jacobina até o rio São Francisco.
Nota: Stuart B. Schwartz conseguiu listar 35 quilombos na região da Bahia entre os séculos XVII, XVIII e XIX.
Sergipe
1. Quilombo de Capela
2. Quilombo de Itabaiana
3. Quilombo de Divina Pastora
4. Quilombo de Itaporanga
5. Quilombo do Rosário
6. Quilombo do Engenho do Brejo
7. Quilombo de Laranjeiras
8. Quilombo de Vila nova
9. Quilombo de São Cristóvão
10. Quilombo de Maroim
11. Quilombo de Brejo Grande
12. Quilombo de Estância
13. Quilombo de Rosário
14. Quilombo de Santa Luíza
15. Quilombo de Socorro
16. Quilombo do rio Cotinguiba
17. Quilombo do rio Vaza Barris
Pernambuco
1. Quilombo do Ibura
2. Quilombo de Nazareth
3. Quilombo de Catucá (extensão do Cova da Onça)
4. Quilombo do Pau Picado
5. Quilombo do Malunguinho
6. Quilombo de Terra Dura
7. Quilombo do Japomim
8. Quilombos de Buenos Aires
9. Quilombo do Palmar
10. Quilombos de Olinda
11. Quilombo do subúrbio do engenho Camorim
12. Quilombo de Goiana
13. Quilombo de Iguaraçu
Maranhão
1. Quilombo da lagoa Amarela (Preto Cosme)
2. Quilombo do Turiaçu
3. Quilombo de Maracaçamé
4. Quilombo de São Benedito do Céu
5. Quilombo do Jaraquariquera
Paraíba
1. Quilombo do Cumbe
2. Quilombo da serra de Capuaba
3. Quilombo de Gramame (Paratuba)
4. Quilombo do Livramento
Rio Grande do Sul
1. Quilombo do negro Lúcio (ilha dos Marinheiros)
2. Quilombo do Arroio
3. Quilombo da serra dos Tapes
4. Quilombo de Manuel Padeiro
5. Quilombo do município de Rio Pardo
6. Quilombo na serra do Distrito do Couto
7. Quilombo no município de Montenegro (?)
Nota: a interrogação posta depois do quilombo do município de Montenegro significa que as fontes informativas não são conclusivas quanto à sua existência; o quilombo de Manuel Padeiro é chamado, em algumas fontes, de Manuel Pedreiro.
Santa Catarina
1. Quilombo da Alagoa (Lagoa)
2. Quilombo da Enseada do Brito
3. Outros quilombos menores “que devem ter dado muito trabalho”.
Minas Gerais
1. Quilombo do Ambrósio (Quilombo Grande)
2. Quilombo do Campo Grande
3. Quilombo do Bambuí
4. Quilombo do Andaial
5. Quilombo do Careca
6. Quilombo do Sapucaí
7. Quilombo do morro de Angola
8. Quilombo do Paraíba
9. Quilombo do Ibituruna
10. Quilombo do Cabaça
11. Quilombo de Luanda ou Lapa do Quilombo
12. Quilombo do Guinda
13. Lapa do Isidoro
14. Quilombo do Brumado
15. Quilombo do Caraça
16. Quilombo do Inficionado
17. Quilombos de Suçuí e Paraopeba
18. Quilombos da serra de São Bartolomeu
19. Quilombos de Marcela
20. Quilombos da serra de Marcília
Nota: Carlos Magno Guimarães conseguiu listar 116 quilombos em minas Gerais no século XVIII.
São Paulo
1. Quilombos dos Campos de Araraquara
2. Quilombo da cachoeira do Tambau
3. Quilombos à margem do rio Tietê, no caminho de Cuiabá
4. Quilombo das cabeceiras do rio Corumateí
5. Quilombo de Moji-Guaçu
6. Quilombos de Campinas
7. Quilombo de Atibaia
8. Quilombo de Santos
9. Quilombo da Aldeia Pinheiros
10. Quilombo de Jundiaí
11. Quilombo de Itapetininga
12. Quilombo da fazenda Monjolinhos (São Carlos)
13. Quilombo de Água Fria
14. Quilombo de Piracicaba
15. Quilombo de Apiaí (de José de Oliveira)
16. Quilombo do Sítio do Forte
17. Quilombo do Canguçu
18. Quilombo do termo de Parnaíba
19. Quilombo da freguesia de Nazaré
20. Quilombo de Sorocaba
21. Quilombo do Cururu
22. Quilombo do Pai Felipe
23. Quilombo do Jabaquara
Rio de Janeiro
1. Quilombo de Manuel Congo
2. Quilombos às margens do rio Paraíba
3. Quilombos na serra dos Órgãos
4. Quilombos da região de Inhaúma
5. Quilombos dos Campos de Goitacazes
6. Quilombo do Leblon
7. Quilombo do morro do desterro
8. Bastilhas de Campos (quilombos organizados pelos abolicionistas daquela cidade)
Região Amazônica
1. Amapá: Oiapoque e Calçoene
2. Amapá: Mazagão
3. Pará: Alenquer (rio Curuá)
4. Pará: Óbidos (rio Trombetas e Cuminá)
5. Pará: Caxiu e Cupim
6. Alcobaça (hoje Tucuruí), Cametá (rio Tocantins)
7. Pará: Mocajuba (litoral atlântico do Pará)
8. Pará: Gurupi (atual divisa entre o Pará e o Maranhão)
9. Maranhão: Turiaçu (rio Maracaçume)
10. Maranhão: Turiaçu (rio Turiaçu)
11. Pará: Anajás (lagoa Mocambo, ilha de Marajó)
12. Margem do baixo Tocantins: Quilombo de Felipa Maria Aranha
Mato Grosso
1. Quilombo nas vizinhanças do Guaporé
2. Quilombo da Carlota (denominado posteriormente Quilombo do Piolho)
3. Quilombos à margem do rio Piolho
4. Quilombo de Pindaituba
5. Quilombo do Motuca
6. Quilombo de Teresa do Quariterê
República de Palmares
Essa pequena listagem bem demonstra como a quilombagem era um fenômeno nacional.
A quilombagem – até hoje estudada com um elemento secundário, esporádico ou mesmo irrelevante durante a escravidão -, à medida que os cientistas sociais avançam nas suas pesquisas, demonstra ter sido um elemento dos mais importantes no desgaste permanente, quer social, econômico e militar, no processo de substituir-se o trabalho escravo pelo assalariado.
A Cultura
O negro não apenas povoou o Brasil e deu-lhe prosperidade econômica através do seu trabalho. Trouxe, também, as suas culturas que deram o ethos fundamental da cultura brasileira.
Negros Serradores de tábuas. Jean-Baptiste Debret
Vindos de várias partes da África, os negros escravos trouxeram as suas diversas matrizes culturais que aqui sobreviveram e serviram como patamares de resistência social ao regime que os oprimia e queria transformá-los apenas em máquina de trabalho.
Com a instalação de um governo despótico escravista, capaz de manter a ordem contra as manifestações da quilombagem, as suas diversas culturas foram consideradas primitivas, exóticas e somente consentidas enquanto estivessem sob o controle do aparelho dominador. Durante a escravidão o negro transformou não apenas a sua religião, mas todos os padrões das suas culturas em uma cultura de resistência social. Aquele que não pode atacar frontalmente procura formas simbólicas ou alternativas para oferecer resistência a essas forças mais poderosas. Dessa forma o sincretismo assim chamado não foi à incorporação do mundo religioso do negro à religião dominadora, mas, pelo contrário, uma forma sutil de camuflar internamente os seus deuses para preservá-los da imposição da religião católica. Não havendo como fugir à religião oficial, num tempo em que existia o monopólio do poder político e o monopólio do poder religioso, pela classe senhorial e a igreja Católica respectivamente. Daí o mecanismo de defesa sincrético dos negros.
A mesma coisa aconteceu com as suas línguas. Não possuindo unidade lingüística, os africanos foram obrigados a criar uma que fosse comum para que pudessem entender. Os povos banto que chegaram em primeiro lugar e aqueles que habitavam a parte sudanesa da África, posteriormente, incorporaram ao nosso léxico milhares de vocábulos na estrutura do português. No entanto, ninguém, ou quase ninguém, viu essa incorporação como um fator de enriquecimento, mas, criou-se a palavra chulo para designar esses vocábulos.
Após a escravidão, os grupos negros que se organizaram como específicos, na sociedade de capitalismo dependente que a substituiu, também aproveitaram os valores culturais afro-brasileiros como instrumentos de resistência.
Isto não quer dizer que se conservassem puros, pois sofrem a influência aculturativa (isto é, branqueadora) do aparelho ideológico dominante. É uma luta ideológico-cultural que se trava em todos os níveis, ainda diante dos nossos olhos. O exemplo das escolas de samba, especialmente no Rio de Janeiro – que perderam a sua especificidade de protesto simbólico espontâneo de antigamente para se institucionalizarem, assumindo proporções de um colossalismo quantitativo e competitivo antipopular e subordinando-se a instituições ou grupos financiadores que as despersonalizaram inteira ou parcialmente do seu papel inicial -, exemplifica o que estamos afirmando.
Participação Política
O negro, escravo ou livre, participou em quase todos os movimentos sócio-políticos que se desenrolaram no Brasil durante a sua trajetória social e histórica. Sem nos referirmos aos quilombos, que também consideramos movimentos políticos independentes, dos próprios escravos. Nas lutas pela expulsão dos holandeses, nas lutas pela Independência e a sua consolidação, na Revolução Farroupilha, nos movimentos radicais da plebe rebelde, como a Cabanagem, no Pará, no Movimento Cabano, em Alagoas, ele esteve presente. Também na Inconfidência Mineira, na Inconfidência Baiana, para lembrarmos mais alguns a sua presença é incontestável como elemento majoritário ou como participante menor. Após o fim da escravidão e do império, o negro se incorporará aos movimentos da plebe, como em Canudos, na comunidade do beato Lourenço, e, mais destacadamente, na revolta de João Cândido.
Alforria
Uma comparação entre duas datas permite perceber a quantidade razoável de negros e mulatos forros ao longo do século do ouro. Em 1735, estes subiam a 1.420, sobre um total de 96.541 escravos (segundo o Códice Costa Matoso), o que representava uma porcentagem de 1,4% aproximadamente. Em 1786, os forros já constituíam 35% da população de cor, embora predominassem entre eles os mulatos.
Negras forras vivendo de seus trabalhos. Debret, BMSP
A principal explicação para esta elevada taxa de libertos se encontra na possibilidade de o negro comprar sua alforria. Comumente os senhores das lavras permitiam a seus trabalhadores catar ouro nas horas livres, nas faisqueiras de baixo rendimento, também chamadas zonas de “ouro podre” ou “distritos de livre mineração”. O produto era parcialmente usado para integrar a quota fixada como preço da liberdade. Em muitos outros casos, o negro escamoteava pepitas da jazida, escondendo-as no corpo, na roupa, no ânus ou nos cabelos, ou lavava o ouro em pó que eventualmente se colava na cabeleira, e acumulava o obtido por esse contrabando para depois adquirir a condição livre, ou pelo menos para comprar uma comida melhor que a farinha de milho, o toucinho e o feijão que lhe eram servidos. Reza a lenda que a igreja de Santa Ifigênia foi construída com o dinheiro da lavagem dos cabelos das negras na pia batismal. É importante lembrar que a fiscalização dos senhores e feitores era severa, o que deve ter coibido um bocado a prática acima. São conhecidas as terríveis humilhações sofridas pelos negros das lavras diamantíferas, obrigados a clisteres de pimenta malagueta pela suspeita de que engolissem alguma pedra. De qualquer maneira, as alforrias eram significativas para a sociedade das Gerais, e aumentaram quando as lavras mais importantes declinaram devido ao ônus que representaria alimentar muitos negros em jazida de baixa renda. Os homens de cor tornados libertos conseguiram em várias ocasiões uma ascensão social, como veremos mais adiante. Mas não se podem levar em excessiva conta figuras lendárias como Chico-Rei, ou brilhantes como Chica da Silva, para situar a posição do negro em Minas; não desaparecerem as mazelas da escravidão, nem as constantes injustiças: o funcionário José João Teixeira Coelho relatou em 1780 a atitude das autoridades judiciárias da capitania com relação aos escravos, falando, por exemplo, de um negro preso em Mariana, por simples suspeita de que fosse um fugitivo. .
Os capitães-do-mato muitas vezes apreendiam homens de cor, libertos ou não, e exigiam resgate por eles. As fugas constantes de escravos constituíam outro sintoma das dificuldades destes, a ponto de haver referência a elas como “um dos grandes problemas de Minas Gerais através do século XVIII”. Existiram muitos quilombos, alguns deles com centenas e até milhares de moradores. As penalidades tornaram-se aos poucos mais cruéis, dada à freqüência da ocorrência; ordem da Coroa de 1741 mandava marcar os fugitivos recambiados com uma letra F impressa a fogo na espádua, o que logo se tornou um símbolo de coragem e distinção entre a escravaria.
Na reincidência, o escravo deveria ter uma orelha cortada, e a pouca eficácia destas medidas levou os camaristas de Mariana a propor em 1755 que a fuga fosse punida com o corte do tendão de Aquiles, para que o incurso ficasse impedido de correr, mas não de trabalhar, capengando. Certa lucidez dos funcionários da administração pombalina impediu a adoção da medida, bem como de outras, propostas por autoridades locais, visando a impedir a compra da liberdade por cativos que arranjassem dinheiro para tanto. Apesar de tudo isso, o número surpreendente de alforrias no setecentismo mineiro resta como saldo favorável à idéia de uma mobilidade social, inexistente nos quadros coloniais anteriores, e que teve força naquela formação social específica.
O café e a decadência da escravidão
Em 1850 é extinto o tráfico de escravos. O açúcar, mercadoria de exportação que dera prosperidade à área de trabalho escravo no Nordeste, entrara em decadência no mercado mundial. O mesmo fenômeno de decadência também se manifesta em Minas Gerais e Goiás, pois a avidez da metrópole exaurira em menos de dois séculos quase toda a riqueza do subsolo daquela área. A fuga permanente do escravo que exigia a manutenção de um aparelho repressivo e de captura permanente também onerava o custo da produção. Inicia-se, assim, a crise do sistema escravista. Por outro lado, na segunda metade do século XIX uma nova cultura aparece no Sudeste com um dinamismo que surpreende e, ao mesmo tempo, exige uma quantidade cada vez maior de mão-de-obra: o café. Não havendo mais a possibilidade de importação de africanos, os fazendeiros do café do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas no início do surto usam o recurso de importar o negro escravo de outras províncias que já se encontravam decadentes, como Pernambuco, Bahia e Ceará. Essa necessidade de importação interprovincial desarticula novamente a população negra, que é deslocada para as novas áreas prósperas, muitas vezes vendo fragmentada a sua família, pois os seus membros podiam ser vendidos para senhores diferentes. Esse novo deslocamento da população negra escrava estava, por isto, subordinado aos senhores. Escreve neste sentido Emília Viotti da Costa:
Foi o café o grande responsável pelo aumento do número de escravos e pela modificação das estatísticas. São Paulo passará com o Rio e Minas a deter, em 1887, 50% da população escrava do país. Os lavradores que avançavam pelo interior do vale fluminense e se fixavam nas terras paulistas e mineiras não encontravam outra solução para o problema da mão-de-obra.
Na economia cafeeira o escravo, já não era mais aquela mercadoria barata e facilmente substituível do Brasil-Colônia, mas, pelo contrário, devia ser protegido, pois a sua inutilização iria onerar o custo da produção. O imigrante, cuja presença se fará sentir, não tinha aptidão pra o tipo de trabalho como ele era praticado nas fazendas cafeeiras. Ademais, era muito caro que o escravo e, enquanto não se conseguia estruturar uma campanha imigrantista, o preço do negro escravo aumentava no mercado.
Nessa fase o escravo passa a ser protegido. O capital investido no negro devia ser protegido e surgem as primeiras leis protetoras. A Lei do Sexagenário, a do ventre-Livre, a extinção da pena de açoite, a proibição de se venderem para senhores diferentes membros da mesma família escrava e outras são mecanismos que protegem mais a propriedade do senhor do que a pessoa do negro escravo. A Lei do Sexagenário, por exemplo, serviu para descartar a população escrava não produtiva, que apenas existia como sucata e dava despesas aos seus senhores. A Lei do ventre-Livre condicionava praticamente o ingênuo a viver até os vinte anos numa escravidão disfarçada trabalhando para o senhor.
A crise do sistema escravista entrava em sua última fase. Do ponto de vista estritamente econômico, capitais de nações européias mais desenvolvidas no sistema capitalista investiam nos ramos fundamentais, como transportes, iluminação, portos e bancos, criando uma contradição que irá aguçando-se progressivamente entre o trabalho livre e o escravo. Tudo isto irá culminar com a Guerra do Paraguai, na qual os negros serão envolvidos na sua grande maioria compulsoriamente, nela morrendo cerca de 90 000. Aqueles que fugiam ao cativeiro, apresentando-se como voluntários, acreditando na promessa imperial de libertá-los após o conflito, foram muitos deles reescravizados.
Essa grande sucção de mão-de-obra negra, provocada pela Guerra do Paraguai, abriu espaços ainda maiores para que o imigrante fosse aproveitado como trabalhador. Essa tática de enviar negros à guerra serviu, de um lado, para branquear a população brasileira e, de outro, para justificar a política imigrantista que era patrocinada por parcelas significativas do capitalismo nativo e pelo governo de D. Pedro II. Nessa fase poderemos ver duas tendências demográficas da população negra, escrava e livre: decréscimo numérico em conseqüência da guerra e do envelhecimento e falecimento de grande parte dos seus membros; concentração dessa população nas províncias de Minas, Rio de Janeiro e São Paulo. Nas demais províncias vemos uma economia estagnada, com uma população negra incorporando-se aos tipos regionais de exploração camponesa, pois os senhores não tinham excedentes monetários para investir na dinamização dessa economia decadente. O negro é, assim, naquelas áreas, incorporado a uma economia de miséria.
A Abolição
O título de “Redentora”, consagrado pelos áulicos da História oficialista à Princesa Isabel, não passa de mais uma falácia com que se costuma enganar nossos estudantes de História. A Abolição não proveio do bondoso coração da regente. Foi produto de uma luta violenta, sangrenta, cheia de heróis anônimos.
Foi produto também do desespero de uma monarquia decrépita, já desprovida de bases de apoio social, condenada, e que agiu como o afogado: agarrou-se a uma palha. Só que já era tarde demais.
Ao abolir a escravidão, estava o Império encostado à parede. “Que se vão os anéis e fiquem os dedos” parece ser sua linha de pensamento. Apenas, ao fazer isto, ignorava estar cometendo o suicídio político, pois perdeu o apoio do último setor social que ainda se interessava em prolongar sua agonia: os grandes latifundiários de café fluminenses e vale-paraibanos, escravistas até à medula. O Império não morreu em 15 de novembro de 1889. Morreu no dia 13 de maio de 1888, e seu atestado de óbito foi assinado pela Princesa Isabel. Dizia: “A partir desta data ficam libertos todos os escravos do Brasil. Revogam-se as disposições em contrário.”.
Abolição da escravidão. Angelo Agostini, IEBUSP.
Além dessas causas estruturais, fatores externos levam o sistema escravista a um impasse cuja solução foi a Abolição sem reformas. O dilema se apresentava diante dos fazendeiros: ou aceitavam a Abolição compromissada como o Trono queria, conservando-lhe os privilégios, ou correriam o risco de ver a Abolição feita pelos próprios escravos, através de medidas radicais, como a divisão das terras senhoriais. A concordata foi feita. O problema da mão-de-obra já estava praticamente resolvido com a importação de milhares de imigrantes. O trabalhador nacional descendente de africanos seria marginalizado e estigmatizado. O ideal de branqueamento das elites seria satisfeito, e as estruturas arcaicas de propriedade continuariam intocadas.
A Guarda Negra
O dia 14 de maio foi festivo para grande parte dos escravos que saíram das senzalas. Durante a euforia predominante, supuseram que haviam conquistado a liberdade e que os caminhos da cidadania estavam abertos para eles.
A princesa Isabel passou a ser, para a sua maioria, o símbolo da redenção do cativeiro. Os ex-escravos tinham como certa a sua equiparação aos demais cidadãos do Império. Houve uma parcela de negros que criou o isabelismo, pensamento que reivindicava a defesa da princesa regente por acreditarem que ela fosse a personalidade que os redimira da escravidão num ato de bondade pessoal.
José do Patrocínio foi o mais fervoroso adepto do isabelismo, e procurou aliciar libertos para defender a monarquia ameaçada pela onda republicana que crescera após a Abolição. Não satisfeito em beijar os pés da Redentora, José do Patrocínio inicia a arregimentação de ex-escravos, capoeiras e marginais de um modo geral, para fundar a Guarda Negra. Esse ajuntamento tinha como finalidade impedir a propaganda republicana, inclusive com a tarefa de dissolver comícios pela violência. Essa posição dos elementos aliciados por José do Patrocínio deu muito trabalho às autoridades e impediu, em muitos casos, que os adversários da monarquia se manifestassem. Os seus membros conseguiram dissolver muitos comícios republicanos através da violência.
Segundo registra a crônica da época, houve mesmo mortes em comícios republicanos pelas quais a Guarda Negra foi responsabilizada. Osvaldo Orico, biógrafo de José do Patrocínio, assim descreve a situação:
Incompreensível por um lado, mas explicável por outro, essa famigerada Guarda Negra tivera um inspirador. Não fora outro senão José do Patrocínio. O fanatismo abrira-lhe na alma a ilusão desse recurso com que imaginava cercar de garantias o prestígio da Redentora de sua raça. Foi a gratidão que o moveu a provocar e a sugerir um movimento de solidariedade dos libertos para com a padroeira inesquecível. E, ao toque de reunir, acorreu de todo lado os antigos sentenciados do cativeiro, ansiosos de oferecer com a força material do peito aberto a flor do seu reconhecimento heróico. Os acontecimentos registrados na capital e no interior, durante a fase em que se fez sentir a influência da Guarda Negra e se apelou para a sua incontida violência, mostraram como fora infeliz a idéia de arregimentar no antigo holocausto das senzalas a força que deveria guardar o Trono. Inaugurou-se uma época de terror que deu à nação enormes prejuízos em dinheiro e em vidas. Onde quer que brilhasse a centelha da luz republicana, surgia aí o conflito das raças, desencadeado pela fúria dos libertos em louvor à rainha. E amiudaram-se os atentados e morticínios. Na Rua do Passeio; em frente à Secretaria de justiça; em dias de março de 89, durante a agitação popular que a febre amarela e a falta de água provocaram, a Guarda Negra deixou indícios de sua lamentável influência.
Nas cidades de Campos e Lage do Murié, ainda segundo Osvaldo Orico, a Guarda Negra agiu com violência contra os republicanos:
Na primeira localidade em uma reunião republicana que se processava pacificamente, massa enorme de policiais e libertos abertos armados invadiu o edifício em que se realizava um banquete democrático, alarmou as senhoras, desrespeitou com ameaças a intervenção amistosa do pároco, que suplicava das janelas do templo ordem e clemência, disparou tiros, arremessou garrafas, espancou e feriu tudo isto para levantar entre acompanhamentos bélicos vivos e saudações à rainha. Na segunda, a polícia, após uma série de distúrbios, prendeu no tronco um honrado cidadão por suspeita de ideais republicanos.
A Guarda Negra era um movimento contraditório e confuso. Apoiava a monarquia porque os escravos conseguiram libertar-se do cativeiro através da magnanimidade da princesa Isabel. Via a Abolição como um ato de munificência social praticado pela regente, sem analisar as estratégias ocultas nessa medida e as conseqüências negativas que a Abolição traria, feita da forma inconclusa como o foi. Por outro lado, deixaram de pressionar os republicanos, especialmente os mais democratas, como Silva Jardim, no sentido de radicalizar o seu programa, exigindo reformas sociais e econômicas estruturais, como a distribuição da terra aos ex-escravos. Foi, portanto, um movimento conjuntural e reacionário, e o próprio José do Patrocínio, ao ver proclamada a República, foi um dos primeiros a aderir ao novo regime. Com isto, a Guarda Negra se desarticulou completamente logo depois da proclamação da República, vindo a desaparecer sem maiores conseqüências.
Nesse período de transição, os negros recém-saídos da escravidão passaram a se organizar de várias formas alternativas, especialmente em grupos de lazer, culturais ou esportivos. Por outro lado, levando-se em consideração a forma como a Abolição foi feita, descartando-os da participação naquelas reformas estruturais que as mudanças do momento estavam a exigir, as reminiscências do sistema escravista e da Redentora continuaram existindo como ideologia de apoio psicológico em diversos grupos negros de ex-escravos. Isto retardou ainda mais o processo, pois a Guarda Negra tinha uma ideologia de retrocesso, de volta ao passado e ao mesmo utópica (monarquia sem escravidão), quando devia exigir medidas de avanço social radicais.
A Imprensa Negra
A revolta dos marinheiros de João Cândido termina em 1911. Quatro anos depois tem início, em São Paulo, uma relevante manifestação de identidade étnica, das mais importantes pra conhecermos a trajetória do negro brasileiro na luta pela cidadania. Referimo-nos à chamada imprensa negra paulista, cujo primeiro jornal intitula-se O Menelick e começa a circular em 1915. Fenômeno dos mais significativos para se analisar o comportamento e a ideologia desse segmento negro urbano, os jornais editados por negros paulistas sucedem-se até 1963, quando é fechado o Correio d’Ébano.
Os negros paulistas, sentindo a necessidade de um movimento de identidade étnica, e enfrentando as barreiras de uma imprensa branca (Grande Imprensa) impermeável aos anseios e reivindicações da comunidade, recorreram à solução mais viável, que era fundar uma imprensa alternativa, na qual os seus desejos, as denúncias contra o racismo, bem como a sua vida associativa, cultural e social se refletissem.
Conforme dissemos, o primeiro desses órgãos foi O Menelick, que conseguiu grande prestígio na comunidade negra, difundindo aquilo que os seus redatores achavam mais interessantes para a vida social e cultural dos negros. Após o primeiro, outros se sucederam na seguinte ordem: A rua e O Xauter, 1916; O Alfinete, 1918; O Bandeirante, 1919; A Liberdade, 1919; A Sentinela, 1920; O Kosmos, 1922; O Getulino, 1923; O Clarim da Alvorada e Elite, 1924; Auriverde, O Patrocínio e O Progresso, 1928; Chibata, 1932; A Evolução e A Voz da Raça, 1933; O Clarim, O Estímulo, A Raça e Tribuna Negra, 1935; A Alvorada, 1936; Senzala, 1946; Mundo Novo, 1950; O Novo Horizonte, 1954; Notícias de Ébano, 1957; O Mutirão, 1958; Hífen e Niger, 1960; Nosso Jornal, 1961; e Correio d’Ébano, 1963.
Esse conjunto de periódicos que se sucede durante quase cinqüenta anos influirá significativamente na formação de uma ideologia étnica do negro paulista e irá influir, de certa maneira, no seu comportamento. Concentrando o seu noticiário nos acontecimentos da comunidade, divulgando a produção dos seus intelectuais nas páginas dessas publicações, aconselhando, orientando e criando, mesmo, um código moral puritana para ser obedecido pelos negros, essa imprensa “feita por negros para negros” marcou profundamente o pensamento do negro paulista.
Os seus sobreviventes, como José Correia Leite, Francisco Lucrécio e Aristides Barbosa ainda rememoram com nostalgia esse período. Esses jornais, mantidos pelos próprios grupos que os editavam e alguns membros da comunidade que se cotizavam para ajudá-los, constituíram um fato único no Brasil. A obstinação desses grupos negros em manterem um espaço ideológico e informativo independente, bem como a sua consciência étnica, determinou a sua continuidade, embora intermitente. Por outro lado, esses jornais também serviram de veículo organizacional dos negros. As discussões que se tratavam nas suas páginas, a colocação permanente dos problemas específicos da comunidade, as denúncias contra o racismo e a violência através de fatos concretos, tudo isso levou a que os negros de São Paulo fundassem o maior movimento político negro no Brasil: a Frente Negra Brasileira.
Esses jornais, conforme já dissemos, não refletiam nas suas páginas os grandes acontecimentos nacionais. Nada sabemos, pela sua leitura, da Coluna Prestes, da revolução de 1930, do movimento de 1932 em São Paulo, da revolta comunista de 1935 e de outros acontecimentos relevantes nesse período. Há, mesmo, uma certa cautela tática, pois neles também não se encontram notícias ou comentários sobre o movimento sindical, as lutas operárias, greves e a participação dos negros nesses eventos. Também não se encontram críticas ao governo. É uma imprensa altamente setorizada nas suas informações e dirigidas a um público altamente específico.
Os seus dois jornais mais importantes, O Clarim da Alvorada e A Voz da Raça, tiveram papel saliente e significativo no despertar da consciência étnica do negro paulista. O primeiro municiou a comunidade de dados e informações preciosos para que o negro se auto-identificasse na sua negritude. O segundo foi o órgão da Frente Negra Brasileira, movimento que marcou profundamente a consciência do negro, e elevou o nível de tomada de sua identidade étnica.
A frente Negra Brasileira
No bojo dessa movimentação ideológica da comunidade negra paulista, através dos seus jornais, surge a idéia da formação da Frente Negra Brasileira. Ela irá constituir-se em um movimento de caráter nacional, com repercussão internacional. Surgiu da obstinação de negros abnegados, como Francisco Lucrécio, Raul Joviano do Amaral, José Correia Leite (que, depois, dela se afastará por motivos ideológicos) e mais alguns.
Fundada em 16 de setembro de 1931, sua sede social central localizava-se na Rua Liberdade, na capital paulista. Sua estrutura organizacional já era bastante complexa, muito mais do que a quase inexistente dos jornais. Era dirigida por um Grande Conselho, constituído de 20 membros, selecionando-se, dentre eles, o Chefe e o Secretário. Havia, ainda, um Conselho Auxiliar, formado pelos Cabos Distritais da Capital.
Criou-se, ainda, uma milícia frente-negrina, organização paramilitar. Os seus componentes usavam camisas brancas e recebiam rígido tratamento, como se fossem soldados. Segundo um dos seus fundadores – Francisco Lucrécio -, a Frente Negra foi fundada ppor ele e outros companheiros embaixo de um poste de iluminação. Ainda segundo a mesma testemunha, no início houve muita incompreensão. Diziam que eles estavam fazendo racismo ao contrário. No entanto, com o tempo, os membros da Frente Negra foram adquirindo a confiança não apenas da comunidade, mas de toda a sociedade paulista. As próprias autoridades a respeitavam. Os seus membros possuíam uma carteira de identidade expedida pela entidade, com retratos de frente e perfil. Quando as autoridades policiais encontravam um negro com esse documento, respeitavam-no porque sabiam que na Frente Negra só entravam pessoas de bem. Ainda segundo depoimento de Francisco Lucrécio, conseguiam acabar com a discriminação racial que existia na então Força Pública de São Paulo. Até aquela data os negros não podiam entrar na corporação. A Frente Negra inscreveu mais de 400 negros, tendo muitos deles feito carreira militar. Por outro lado, havia divergências na comunidade negra em relação à ideologia da Frente, pois muitos não aceitavam a ideologia patrianovista (monarquista) que o seu primeiro presidente, Arlindo Veiga dos Santos, queria impor aos seus membros. Isso iria refletir na trajetória da entidade. Uma visão direitista levou muito dos seus adeptos a posições simpáticas em relação ao integralismo e ao nazismo.
Paradoxalmente, o conceito de raça é manipulado pelos frente-negrinos, que, no seu jornal A Voz da Raça, coloca como seu slogan “Deus, Pátria, Raça e Família”, que depois foi modificado. Era o slogan decalcado diretamente do “Deus, Pátria e Família”, da Ação Integralista. Apesar dessas contradições ideológicas, a Frente Negra se desenvolveu rapidamente, criando núcleos em vários Estados do Brasil. Milhares de negros, nas principais áreas do país, aderem ao seu ideário e passam a ser seus membros.
Em face dos êxitos alcançados, a Frente Negra resolveu transformar-se em partido político. Tinha todas as condições exigidas pela Justiça Eleitoral da época, e entrou com pedido nesse sentido em 1936. Sobre o assunto houve discussão entre os membros do Tribunal, que chegaram a alegar uma tendência racista na Frente. Finalmente o seu registro foi concedido. Durou pouco, porém. Logo em seguida, 1937, o golpe de Estado deflagrado por Getúlio Vargas implantando o Estado Novo dissolverá todos os partidos, entre eles a Frente Negra Brasileira.
Houve um trauma muito grande na comunidade que a acompanhava ou militava nos seus quadros. Milhares de negros sentiram-se desarvorados politicamente. Um dos seus fundadores, Raul Joviano do Amaral, tenta conservar a entidade, mudando-lhe o nome para União Negra Brasileira. Mas a situação geral do país não era favorável à vida associativa no Brasil, onde a repressão via atos subversivos em qualquer organização. O jornal A Voz da Raça deixa de circular. A censura é imposta a todos os órgãos de imprensa, e a União, que procurou substituir a Frente, morre melancolicamente, em 1938, exatamente quando se comemoravam 50 anos da Abolição.
Nova articulação
O interregno do Estado Novo inibiu a comunidade negra nacionalmente do ponto de vista organizacional e ideológico. Da mesma forma como as entidades populares e democráticas, sindicatos, associações culturais e outras ficaram sob a vigilância permanente dos órgãos de segurança e repressão, as organizações negras recuaram diante da situação. Passaram a se organizar como simples clubes de lazer, especialmente dançantes ou esportivos. Somente com a redemocratização, com a vitória dos Aliados e a derrota do nazismo, o negro começa a organizar-se outra vez de forma significativa. Assim, em 1945 foi fundado, no Rio de Janeiro, o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, o qual tinha como objetivos principais:
• A convocação de uma Assembléia Constituinte;
• Anistia ampla e incondicional para os crimes políticos e conexos;
• Extinção do Tribunal de Segurança Nacional;
• Intensificação do esforço de guerra;
• Liberdade de palavra escrita e falada;
• Liberdade de agremiação;
• Direito de voto aos membros das Forças Armadas sem distinção de postos e direito a sua participação na Assembléia Constituinte;
• Direito de voto nos navios mercantes;
• Reconhecimento do direito de greve;
• Atamento de relações diplomáticas com a URSS;
• Autonomia sindical;
• Direito de sindicalização para o trabalhador das organizações autárquicas;
• Assistência ao trabalhador rural;
• Direito de sindicalização para as empregadas domésticas;
• Liberdade de culto às religiões afro-brasileiras;
• Ensino gratuito;
• Punição às empresas que fazem seleção racial e de cor;
• Abolição das seleções raciais e de cor na diplomacia;
• Abolição da seleção de cor nas escolas militares;
• Participação do negro nos assuntos de colonização e imigração;
• Democratização de todas as organizações negras, aproximando-as das organizações dos brancos;
• Fazer a aproximação das escolas de samba, clubes dançantes, associações religiosas, livrando-as da exploração política e comercial;
• E criar escolas de alfabetização em todo o território nacional.
O Comitê propunha, ainda, a realização de um Congresso Popular Brasileiro, colaborar com o Congresso de Artistas Plásticos e também, entre outras coisas, o início de uma campanha para a construção de um monumento a José do Patrocínio. Nessa mesma conjuntura de redemocratização surge, em 1944, o Teatro Experimental do Negro, no Rio de Janeiro, liderado por Abdias do Nascimento. Ensaiou e apresentou peças, dinamizou a consciência da negritude brasileira e editou um jornal, Quilombo, no qual o pensamento do grupo e a proposta do TEN se apresentavam à opinião pública.
O TEN teve de experimentar grandes dificuldades, quer financeiras, quer ideológicas, suspendendo as suas atividades no palco, mas sempre procurando levantar o problema do negro. Nesse sentido, o TEN organizou o Instituto Nacional do Negro e ao mesmo tempo procurou imprimir às suas atividades um conteúdo de elite cultural negra. Sob sua influência foi convocada a Conferência Nacional do Negro, em 1949. Por essa mesma época o poeta Solano Trindade, que vinha já de atividades anteriores como fundador, em 1936, de um Centro de Cultura Afro-Brasileira, antigo participante da Frente Negra Brasileira em Pernambuco e criador de um grupo de arte popular no Rio Grande do Sul, procuram fundar, no Rio de Janeiro, em 1945, o Teatro do Povo. Essa sua idéia não teve êxito em conseqüência de dificuldades financeiras e ideológicas que surgiram. Reúne-se a Haroldo Costa em 1948 para formarem o Teatro Folclórico Brasileiro, dele no entanto se afastando quando o empresário Askanasi transformou-o em uma empresa meramente comercial. Ainda no sentido de organizar o negro culturalmente, fundou juntamente com Edison Carneiro e Dirceu de Oliveira o Teatro Popular Brasileiro, composto de artífices, operários de fábricas, domésticas e pessoas de outras camadas populares. Com esse grupo viajou ao exterior, obtendo êxito em várias capitais européias. O Teatro Popular, no entanto, dispersou-se logo após o seu regresso. Solano Trindade, em São Paulo, tenta reorganizá-lo, continuando com exibições esporádicas até a sua morte.
Por outro lado, não devemos nos esquecer das organizações negras que se articularam durante muito tempo e continuamente, atravessando os períodos de crise aguda da sociedade brasileira. No interior de São Paulo, especialmente, essas entidades funcionaram sem solução de continuidade durante muitos anos e existem até hoje em número calculado em mais de cem. Temos como exemplos as que funcionam como clubes de lazer nas cidades de Campinas, Sorocaba, Piracicaba, São Carlos, Jundiaí, Araraquara, Catanduva e em outras cidades, muitas delas fundadas há mais de trinta há até cinqüenta anos.
Renascimento
Após 1954 há um renascimento do negro, na capital de São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras capitais, que possibilita a se organizarem em entidades significativas. Em dezembro de 1954, em São Paulo, foi organizada a Associação Cultural do Negro na Rua São Bento. O seu presidente era Geraldo Campos de Oliveira; vice-presidente, Américo Orlando da Costa. Sua direção era composta de uma Diretoria Executiva, com oito membros, e um Conselho Superior, presidido por José Correia Leite (um veterano líder, fundador do Clarim da Alvorada), e tendo como secretário Américo Santos. O seu Conselho compunha-se de 29 membros. A ACN possuía departamentos de Cultura, Esporte, Estudantil, Feminino, e uma Comissão de Recreação. Geraldo Campos de Oliveira dinamizou as atividades da associação e editou um Caderno de Cultura Negra. Em 1958 a entidade centrou as suas atividades no registro dos 70 anos da Abolição. A ela juntaram-se, para realizar esses atos, o Teatro Experimental do Negro (de São Paulo); o Teatro Popular Brasileiro, de Solano Trindade; a Associação Paulista dos Amigos do homem do Norte e do Nordeste; o Grêmio Estudantil Castro Alves; a Sociedade Recreativa José do Patrocínio de São Miguel; e o Fidalgo Club.
Discutiu-se, na época, qual deveria ser a ideologia que o negro devia adotar para a sua libertação étnica, desdobrando-se esse debate em diversos níveis, que iam do cultural ao político. Esse aspecto de polêmica ideológica vai desaparecendo especialmente a partir do golpe militar de 1964.
A ACN, depois de algum tempo inativa, muda-se, em 13 de maio de 1977, para o bairro da Casa Verde, com objetivos mais assistenciais e filantrópicos do que de reivindicações ideológicas. Criou uma escola, com cursos de alfabetização e madureza que funcionavam gratuitamente. Apesar de tudo isto, a Associação Cultural do Negro não tem mais o seu ethos inicial, tendo de fechar as suas portas.
Devemos salientar, também, o funcionamento das escolas de samba que serviam e servem de veículos de organização cultural do negro, centenas de pequenos clubes, recreativos ou com outras finalidades, espalhados em todo o território nacional, além de terreiros de Candomblé, Xangô, Macumba e Umbanda, que servem também para agrupar o negro brasileiro. Uma verdadeira teia nacional desses grupos mantém o negro unido e cria condições para a preservação da sua memória afro-brasileira.
Por outro lado, a situação do Brasil durante o golpe militar que foi instaurado no país impossibilitou qualquer diálogo democrático entre esses grupos negros e as autoridades autoritárias que sempre os viram com desconfiança acreditando serem pontos de subversão.
Em conseqüência da saída dos militares do poder, fundam-se organizações mais estruturadas, que retomam a tradição de uma posição de luta étnica e cultural. Essas organizações articulam-se e promovem uma série de atividades culturais, sociais e recreativas, tomando, de vez em quando, posições abertas contra o preconceito racial. A unificação dessas organizações deu-se, finalmente, a partir do dia 18 de junho de 1978, quando da realização de um ato público de protesto nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. Os fatos que determinaram a sua convocação foram a morte do trabalhador negro Róbson Silveira da Luz, no mês de maio, devido a torturas em uma delegacia de guaianases, na capital de São Paulo; a expulsão, no mês de maio, de quatro atletas juvenis negros do Clube de Regatas Tietê; e, finalmente, o assassinato por um policial, no bairro paulistano da Lapa, de Nilton Lourenço, operário negro.
Durante esse ato foi criado o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, depois abreviado para Movimento Negro Unificado. A partir daí várias outras organizações de militantes surgiram no Brasil inteiro e atualmente reivindicam o fim do racismo e da exploração econômica, social e cultural do negro. Mas esta é uma história que ainda está sendo vivida, para depois ser contada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário