Educar é Semear

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quinta-feira, 28 de julho de 2011

textos

A B C ,  Luis Fernando Veríssimo


            Quando a gente aprende a ler, as letras, nos livros, são grandes. Nas cartilhas - pelo menos nas cartilhas do meu tempo - as letras eram enormes. Lá estava o A, como uma grande tenda. O B, com seu grande busto e sua barriga ainda maior. O C, sempre pronto a morder a letra seguinte com a sua grande boca. O D, com seu ar próspero de grão-senhor. Etc. Até o Z, que sempre me parecia estar olhando para trás. Talvez porque não se convencesse que era a última letra do alfabeto e quisesse certificar-se de que atrás não vinha mais nenhuma.

            As letras eram grandes, claro, para que decorássemos a sua forma. Mas não precisavam ser tão grandes. Que eu me lembre, minha visão na época era perfeita. Nunca mais foi tão boa. E no entanto os livros infantis eram impressos com letras graúdas e entrelinhas generosas. E as palavras eram curtas. Para não cansar a vista.

            À medida que a gente ia crescendo, as letras iam diminuindo. E as palavras, aumentando. Quando não se tem mais uma visão de criança é que se começa, por exemplo, a ler jornal, com seus tipos miúdos e linhas apertadas que requerem uma visão de criança. Na época em que começamos a prestar atenção em coisas como notas de pé de página, bulas de remédio e subcláusulas de contrato, já não temos mais metade da visão perfeita que tínhamos na infância, e esbanjávamos nas bolas da Lulu e no corre-corre  do Faísca.

 Chegamos à idade de ler grossos volumes em corpo 6 quando só temos olhos para as letras gigantescas, coloridas e cercadas de muito branco, dos livros infantis. Quanto mais cansada a vista, mais exigem dela. Alguns recorrem à lente de aumento para seccionar as grandes palavras em manejáveis monossílabos infantis. E para restituir às letras a sua individualidade soberana, como tinham na infância.

O E, que sempre parecia querer distância das outras. O R! Todas as letras tinham pé, mas o R era o único que chutava. O V, que aparecia em várias formas: refletido na água (o X), de muletas (o M), com o irmão siamês(o W). O Q, que era um O com a língua de fora.

De tanto ler palavras, nunca mais reparamos nas letras. E de tanto ler frases, nunca mais notamos as palavras, com todo o seu mistério. Por exemplo: pode haver palavra mais estranha do que "esdrúxulo"? É uma palavra, sei lá. Esdrúxula. Ainda bem que nunca aparecia nas leituras da infância, senão teria nos desanimado. Eu me recusaria a aprender uma língua, se soubesse que ela continha a palavra "esdrúxulo". Teria fechado a cartilha e ido jogar bola, para sempre. As cartilhas, com sua alegre simplicidade, serviam para dissimular os terrores que a língua nos reservava. Como "esdrúxulo". Para não falar em "autóctone". Ou, meu Deus, em "seborréia'!


Na verdade, acho que as crianças deviam aprender a ler nos livros do Hegel e em longos tratados de metafísica. Só elas têm a visão adequada à densidade do texto, o gosto pela abstração e tempo disponível para lidar com o infinito. E na velhice, com a sabedoria acumulada numa vida de leituras, com as letras ficando progressivamente maiores à medida que nossos olhos se cansavam, estaríamos então prontos para enfrentar o conceito básico de que vovô vê a uva, e viva o vovô.


Vovô vê a uva! Toda a nossa inquietação, nossa perplexidade e nossa busca terminariam na resolução deste enigma primordial. Vovô. A uva. Eva. A visão. Nosso último livro seria a cartilha. E a nossa última aventura intelectual, a contemplação enternecida da letra A. Ah, o A, com suas grandes pernas abertas.


in Comédias para se ler na escola, de Luís Fernando Veríssimo

Amanhã

(Guilherme Arantes)

Amanhã será um lindo dia, da mais louca alegria
 Que se possa imaginar, amanhã redobrada a força
 Pra cima que não cessa, há de vingar
 Amanhã mais nenhum mistério, acima do ilusório
 O astro rei vai brilhar, amanhã a luminosidade
 Alheia a qualquer vontade, há de imperar, há de imperar
 Amanhã está toda a esperança por menor que pareça
 O que existe é pra festejar, amanhã apesar de hoje
 Ser a estrada que surge, pra te trilhar
 Amanhã mesmo que uns não queiram será de outros que esperam
 Ver o dia raiar, amanhã ódios aplacados temores abrandados
 Será pleno, será pleno...




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