quinta-feira, 28 de julho de 2011

                                    A discussão dos talheres

Maria Hilda de J. Alão.



Garfo, faca e colher estavam numa gaveta discutindo um assunto sério: quem era o melhor e o mais útil no mundo dos homens. A faca, vaidosa, dizia:
- Eu facilito a vida do homem. Corto coisas enormes que ele jamais poderia utilizar ou comer sem a minha ajuda.
O garfo, muito metido, disse com empáfia:
- Sem mim os homens teriam de usar os dedos para levarem os alimentos à boca, e como esquecem de lavar as mãos engoliriam tanta bactéria que teriam indigestão bacteriana.
- Você sabe por que o homem comia com os dedos?
- Não. – disse o garfo.
- Porque achavam que o alimento era sagrado e por isso devia ser comido com os dedos.
- Mas sem lavar as mãos, não é dona faca? Eu continuo dizendo que sou a ferramenta indispensável na mesa dos humanos.    
A faca, nervosa, retrucou:
- Deixa de ser burro, garfo tonto. Garfo sem faca é o mesmo que relógio sem ponteiro, um não funciona sem o outro. Eu sou talher mais antigo da história! Fui feita de pedra e servia para a caça e defesa. Depois passei a ser feita de bronze, isso numa outra época.
- Eu sei, seu bobo enxerido, que o homem oriental usava pauzinho a guisa de garfo, feito de bambu e tinha um nome engraçado, hashi. Isso você não sabia. Sabia? Sei, também, que apesar de você ser antigo só chegou ao mundo ocidental no século XI, na Itália. Você foi criado pelos gregos e adotado no século VII pelo Império Bizantino. Na Inglaterra, até o início do século XVII você era considerado utensílio efeminado.
- Não fale assim de mim, dona faca. – choramingou o garfo - Eu não sou efeminado. Eu nasci para facilitar, não para complicar. Eu sei tudo isso que você falou. Sei que ainda hoje, entre os orientais, permanece o uso dos pauzinhos. Com os pauzinhos o homem demorava muito tempo para comer. Cada vez que ele pegava uma porção para levar à boca, caía tudo de volta para o prato. Comigo não. Ele me enche de comida e eu entafulho a sua boca.
- Você, seu garfo, é malvado porque incita o homem a comer demais e muito rápido. O costume de comer muito e rápido é prejudicial à saúde. Os pauzinhos são uma forma de disciplinar a alimentação. Aos poucos e devagar. Com eles não se pode pegar um bolão de comida.
- Não adianta, dona faca, sem esse garfinho aqui o homem é nada vezes nada.
- Ora, não seja convencido! - exclamou a faca – às vezes você machuca a boca das pessoas.
- Ah, é!? E você que corta os dedos das crianças.
- Só das crianças desobedientes. Eu ouço sempre as mães dizendo:
- Crianças não brinquem com facas...
E o garfo exultante acrescentou:
- Viu, viu como eu sou mais útil do que você? Eu nunca ouvi uma mãe dizer: - Não peguem o garfo, crianças!  Ah, ah, ah, eu sou bom demais!!!
- Pode rir seu bobo. – disse a faca amuada – o seu deboche não me atinge, porque eu sei que você também é perigoso nas mãos das crianças.
E a discussão continuou. A colher, que estava quietinha lá no seu cantinho, numa das divisões do porta-talher, interferiu:
- Dá licença!
- Pois não, dona colher – disse o garfo.
- Vocês estão nessa discussão boba de quem é melhor, quem é mais útil sem pensar que somos um conjunto. Deus permitiu que o homem tivesse a inspiração para nos criar e fazer de nós o pai, o filho e o espírito santo das cozinhas. Somos a tríade que facilita o trabalho de preparar e ingerir os alimentos. A minha história é meio nebulosa. Foram encontrados, em escavações, objetos semelhantes a mim, provavelmente, com mais de vinte mil anos. Sei que os gregos antigos utilizavam a colher de pau para preparar e comer os alimentos. Como vocês podem ver a minha história não é tão interessante quanto as suas. O que tenho certeza é que já fomos objetos rústicos, hoje somos mais modernos. Somos feitos de metal, plástico e madeira. Somos até jóias feitas em ouro e prata. Mas a nossa função é a mesma, desde que surgimos na civilização: ajudar o homem na sua alimentação.
 Nós somos a união, e a união faz a força. Lembrem-se que um é complemento do outro. E se é para se gabar de utilidade, eu quero fazer uma pergunta:
- Diante de um fumegante prato de sopa, quem é o mais útil? Ah, ah, ah, ah, peguei vocês.






















A gota d’água celestial

        Nos primeiros anos da Criação, uma gota d'água celestial pediu e Deus consentiu: ela queria estar junto aos homens. Estava determinada a auxiliar a humanidade em sua caminhada evolutiva e, para tanto, desceria dos páramos siderais e colocar-se-ia a serviço dos seres inteligentes da criação, na Terra.
        Assim, ela partiu das mãos do Criador e se incorporou a uma nuvem formada no Céu, que mais tarde se transformou em abundante chuva que caiu sobre a Terra. O aguaceiro formado iniciou sua caminhada, logo se transformando em enfurecida torrente, que rompeu terreno hostil, provocando a abertura de sulcos que mais tarde seriam rios.
        Misturada a milhões de gotas d'água terrenas, a missionária foi impulsionada para diante, suportando diversos encontrões em pedras, lajedos, fendas, troncos e raízes de árvores. Sem domínio sobre si, experimentou, pela primeira vez, a dor, o medo e a incerteza. Não imaginava aquela recepção tão rude e desastrosa e, em alguns instantes, sentiu arrependimento, desespero e tristeza.
        Por vários dias, a chuvarada caiu sobre a Terra e a gota d'água celeste não teve trégua. Era lançada para lá e para cá, numa convulsão que não cessava. Ferida e cansada, experimentou o remorso, a culpa e o abandono, sentindo-se desprotegida e esquecida. Acabou retida em uma poça que se formou ao longo do caminho. Ali descansou por alguns dias e, aliviada, recompôs-se intimamente.
        Logo após, foi ingerida por pequeno animal e, ao circular por seu organismo, foi chamada a servir, misturando-se com substâncias diversas, que nutriam o animal. Agiu com extremada dedicação, renúncia e humildade. Adaptada àquela situação, que para ela representava um longo período, sentiu-se desprezada quando foi abruptamente lançada fora, ao final do processo digestivo do animal.
        Chegando ao solo, foi absorvida pela raiz de uma árvore, servindo como condutora da seiva que nutriu a planta. Ao cabo de bom período, ressurgiu para o mundo exterior como produto do orvalho que se depositou em bela flor. Inebriada pelo perfume, experimentou sentimentos nobres como a esperança, a ternura, o carinho e o amor. Reabsorvida pela planta, ingressou, mais tarde, na composição de vigoroso fruto, sendo posteriormente digerida por um ser humano.
        Por um período maior, conviveu no interior do organismo do homem, indo se alojar, mais demoradamente, no coração. Ali, partilhou de emoções diversas, que foram de extremado ódio, inveja, maldade, traição, calúnia e ofensa às manifestações de alegria, prazer, felicidade, glória, conquista e realização.
        Ao cabo de algum tempo, foi chamada aos Céus. Retomou seu lugar no Reino Celestial. Lá, manteve-se taciturna e reflexiva. De tudo que viu, passou e fez, sentiu nascer dentro de si um sentimento nobre chamado saudade. Já não era a mesma gota d'água de antes. Estava contaminada por sentimentos que são próprios dos homens, e era junto a eles que gostaria de permanecer.
        O Criador, sentindo aquela mudança e num ato de amor e reconhecimento, chamou-a e, abençoando-a, disse:
        "- Voltarás e ficarás para sempre junto aos homens. Darás para sempre testemunho do que aprendeste. Serás o anúncio da dor, do medo, da incerteza, do arrependimento, do desespero, da tristeza, do remorso, da culpa, do abandono, da dedicação, da renúncia e da humildade.  Serás a prova da alegria vinda do coração; a companheira dos desprotegidos, esquecidos e desprezados. Serás lenitivo, até mesmo diante do ódio, da inveja, da maldade, da traição, da calúnia e das ofensas. Serás o grito dos que amam em silêncio; o alento da saudade; o desabafo dos oprimidos; o eco dos perseguidos e o clamor dos injustiçados. Estarás presente até mesmo na alegria, no prazer, na felicidade, na glória, na conquista e nas realizações nobres alcançadas pelos homens! E, quando quiserem saber quem és, nada dirás. Apenas brotarás dos olhos dos que choram, sob a forma de lágrima".

Do livro: "Histórias que ninguém contou, conselhos que ninguém deu",
de Melcíades José de Brito. Editora DPL.


Nenhum comentário:

Postar um comentário